Afleveringen

  • Em um cenário global de tensões geopolíticas em um ponto crítico, as nações são compelidas a reavaliar e fortificar suas estratégias de defesa. O Japão, tradicionalmente conhecido por sua postura pacifista pós-Segunda Guerra Mundial, está passando por uma transformação significativa em sua postura de defesa, impulsionado pelas pressões crescentes da China e pelos imperativos estratégicos de manter a estabilidade regional.

    Thiago de Aragão, analista político

    As recentes falas e ações do primeiro-ministro Fumio Kishida sublinham um pivô histórico do Japão, visando uma capacidade de defesa reforçada e uma aliança aprofundada com os Estados Unidos. As declarações do primeiro-ministro evidenciam a urgência com a qual o Japão encara o panorama geopolítico atual. Citando a agressão na Ucrânia, as persistentes tensões no Oriente Médio e a situação no leste asiático, Kishida anunciou a decisão do Japão de reforçar fundamentalmente suas capacidades de defesa, marcando uma mudança significativa na política de segurança do país. Esse movimento é uma resposta direta ao "ponto de virada histórico" que o Japão enfrenta, impulsionado por pressões externas, particularmente a agressão marítima da China e disputas territoriais nos mares do Leste e do Sul da China.

    A iminente cúpula entre Kishida e Biden é retratada como uma oportunidade histórica para modernizar a aliança Japão-EUA, um pilar de paz e estabilidade na região do Indo-Pacífico. Essa aliança está se tornando cada vez mais vital em meio a ameaças regionais, incluindo os testes de armas da Coreia do Norte e as ações assertivas da China em relação a Taiwan e no Mar do Sul da China. A parceria visa não apenas contrapor essas ameaças, mas também apoiar o papel expandido do Japão em questões de segurança global e regional.

    Sob a liderança de Kishida, o Japão desviou-se de sua Constituição pacifista pós-guerra, com planos de aumentar os gastos com defesa para 2% do PIB até 2027 e adquirir capacidades de contra-ataque. Essa mudança estratégica é uma reação direta ao "ambiente de segurança severo e complexo" que o Japão enfrenta, cercado por nações que aprimoram suas capacidades militares e se engajam em atos agressivos que ameaçam a estabilidade regional.

    Capacidade de dissuasão e resposta

    Um aspecto crucial do reforço militar do Japão é o desenvolvimento de suas capacidades de inteligência, vigilância e reconhecimento (ISR). Essenciais para ataques de longo alcance, as capacidades ISR permitem uma eficaz identificação de forças inimigas, um componente crítico na manutenção da postura de defesa do Japão contra ameaças. O investimento do governo japonês em mísseis de ataque terrestre Tomahawk, baterias de projéteis hipervelozes e mísseis de ataque ao solo de longo alcance Joint destaca a prioridade dada à capacidade de dissuasão e resposta.

    Diante desses aprimoramentos estratégicos, Kishida enfatiza a importância da cooperação internacional e de uma comunidade internacional forte baseada no estado de direito. O objetivo não é apenas contrariar ameaças, mas fomentar uma atmosfera de cooperação em vez de divisão. Essa visão inclui aprofundar os laços com outros aliados dos EUA, como as Filipinas, e reforçar o papel do Japão na garantia da paz, estabilidade e prosperidade da comunidade internacional.

    À medida que o Japão fortalece suas capacidades de defesa em resposta às pressões regionais, especialmente da China, o mundo observa atentamente esse movimento. O resultado da cúpula Kishida-Biden e a trajetória futura da aliança Japão-EUA serão fundamentais na formação da paisagem de segurança do Indo-Pacífico. O pivô histórico do Japão do pacifismo para uma postura de defesa mais assertiva, respaldado por capacidades ISR aprimoradas e cooperação internacional, sinaliza um novo capítulo em seu cálculo estratégico, reconhecendo as complexidades do ambiente geopolítico atual e o papel indispensável das alianças.

  • Atualmente duas hipóteses cercam esta pergunta que não quer calar. A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro alega que ele dormiu lá para “manter contato com autoridades daquele país”. Convenhamos que é uma alegação inverossímil. Para manter tais contatos ele nem precisaria ir à embaixada, quanto mais dormir nela por duas noites, em pleno carnaval. Bastaria telefonar, marcar um zoom, skype, ou algo parecido, mesmo que encriptado.

    Flávio Aguiar, analista político

    A outra hipótese, mais provável, diz que, com o passaporte apreendido, ele executou o que em xadrez se chama de um “roque preventivo”. Naqueles dias de incerteza, temendo ser preso, recolheu-se ao teto amigo, onde, em caso de necessidade, poderia pedir asilo político.

    Mas vá lá: qualquer que seja a hipótese aceita, a resposta àquela pergunta é: Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, seu correligionário de extrema-direita, com quem costuma trocar elogios.

    Mas afinal, quem é e o que pretende Viktor Orbán?

    Para começo de conversa, no poder há 14 anos, Orbán é o segundo governante mais longevo no cargo no continente europeu, só perdendo para Alexander Lukashenko, da Belarus, na presidência de seu país desde 1994.

    Analistas de variadas tendências apontam que ele é um político que ostenta uma formação universitária complexa e sofisticada e, ao mesmo tempo, é capaz de gestos simbólicos como o de se juntar a bombeiros e trabalhadores braçais, amontoando sacos de areia para deter uma enchente.

    Também se aponta sua habilidade em escolher alvos de fácil identificação como inimigos preferenciais de seu país. Um deles, por exemplo, foi o bilionário e conterrâneo George Soros, caracterizando-o como uma espécie de Mágico de Oz disposto a controlar a Hungria desde os bastidores da política. Através desta manobra, Orbán se opôs ao liberalismo político que dominava a cena europeia no século XXI e consolidou a ideia de que pretende criar um regime que caracteriza como “iliberal”.

    Nesta esteira avançou seu controle sobre a mídia e o parlamento. Conseguiu expulsar para Viena, na Áustria, a maior parte das atividades da universidade que Soros financiara em Budapeste, a capital húngara.

    Orbán fundou o partido Fidesz, que lidera até hoje, ainda quando era estudante universitário, prometendo lutar pela “liberdade” depois do fim dos regimes comunistas na Europa Oriental. Entretanto, seus críticos o apontam como o líder autoritário e autocrático de sucesso mais proeminente e duradouro na Europa de hoje.

    Além de Soros, Orbán apontou para seu público uma série variada de inimigos: o imigrante ou refugiado do “Sul do Mundo” e o muçulmano, que acusou frequentemente de trazer “tendências terroristas” para a Europa. “A Europa para os europeus, a Hungria para os húngaros”, é um de seus slogans preferidos.

    Referência para a extrema direita

    Orban apresenta-se como um defensor de valores cristãos e da família heterossexual, condenando qualquer outro tipo de relação sexo-afetiva.

    Com tal folha de serviços pretende fazer de si e da Hungria uma referência internacional para políticas de extrema direita. Além de Bolsonaro, é amigo de Benjamin Netanyahu e é considerado o líder europeu mais próximo de Vladimir Putin, sendo crítico em relação ao apoio dado pelo Ocidente à Ucrânia, defendendo que esta não tem condições de vencer a Rússia na guerra ali travada.

    Ele compareceu à posse de Javier Milei na Argentina e é admirador de Donald Trump, a quem dá conselhos. Leva pelo menos uma vantagem sobre o norte-americano: prestes a completar 61 anos, parece um “jovem” diante dos 77 de Trump.

    Além destas “afinidades eletivas”, há mais um fator importante na preferência de Bolsonaro pela embaixada da Hungria.

    Em novembro de 2018, o ex-primeiro-ministro da pequena Macedônia do Norte, o direitista Nikola Gruevski, estava prestes a cumprir pena de prisão, condenado por atos de corrupção. No dia em que deveria se apresentar para cumprir a pena, não o fez.

    Três dias depois apareceu em Budapeste, na Hungria, e dali a uma semana Órban concedeu-lhe asilo, que perdura até hoje. Pesquisas posteriores demonstraram que da Macedônia do Norte até a Hungria, Gruevski passou de carro por três outros países, Albânia, Montenegro e Sérvia, sempre escoltado por diplomatas húngaros.

    Ou seja: a embaixada da Hungria seria mesmo o caminho mais seguro para o ex-presidente brasileiro manter-se livre, caso sua prisão fosse decretada naqueles dias de Carnaval. Até mesmo o ditador Pinochet no Chile e os golpistas de 64 no Brasil respeitaram este direito de asilo em embaixadas, que é uma tradição latino-americana.

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  • O recente ataque no Crocus City Hall em Moscou, que deixou ao menos 137 mortos na sexta-feira (22), marca um momento decisivo para a liderança do presidente Vladimir Putin, principalmente diante de sua recente vitória eleitoral. Este trágico incidente não apenas expõe falhas gritantes na segurança nacional, mas também levanta questões sobre possíveis vulnerabilidades no regime russo.

    Thiago de Aragão, analista político

    Os Estados Unidos já haviam alertado sobre o risco de um ataque do grupo Estado Islâmico (EI) na Rússia, inclusive publicando no site da embaixada americana em Moscou. Putin, no entanto, talvez subestimando a gravidade da situação, descartou esses avisos e os consderou meras provocações.

    Especificamente, Washington tinha informações sobre potenciais atividades extremistas visando grandes aglomerações em Moscou - deixando claro que uma casa de shows, como a Crocus City Hall, eram possíveis alvos -, mas parece que as autoridades russas não deram a devida atenção a essas advertências. O fato de militantes do grupo EI terem conseguido executar este ataque logo após a reeleição de Putin, quando ele prometia reforçar a segurança nacional, levanta sérias questões sobre a segurança nacional russa.

    Este incidente abala a imagem de uma Rússia forte e segura sob a liderança de Putin. O Kremlin tentou rapidamente atribuir a culpa à Ucrânia, sem apresentar provas concretas, o que levanta ainda mais suspeitas sobre a transparência e a responsabilidade do governo Putin. Essa estratégia de desviar a atenção não resolve as falhas de segurança interna expostas pelo ataque.

    Consequências além das fronteiras russas

    A aparente desconsideração de Putin pelos avisos dos Estados Unidos não agrava as já tensas relações entre os dois países, especialmente em um contexto de discórdia global, mas cria um constrangimento pesado para Putin. Isso destaca a complexidade da colaboração internacional de inteligência e a importância de levar a sério ameaças críveis, independentemente de sua origem.

    No fim das contas, o ataque ao Crocus City Hall coloca em xeque a imagem de controle e segurança cultivada por Putin, revelando a ameaça persistente do terrorismo e a necessidade urgente de operações de inteligência eficientes e cooperação global no combate às ameaças à segurança. Este evento pode ter um impacto duradouro na popularidade do líder russo e na percepção de solidez de seu governo.

    O ataque em Moscou sinaliza também um ressurgimento perturbador das atividades do grupo EI, elevando os riscos de segurança para a Ucrânia e a Europa. Ele destaca a contínua capacidade e intenção dos jihadistas de atingir a Rússia, em parte como retaliação pelas ações militares russas na Síria e na Chechênia, e pelos conflitos históricos em regiões de maioria muçulmana, como o Afeganistão.

    Os engajamentos militares passados da Rússia, especialmente os brutais conflitos chechenos e seu apoio ao regime sírio, alimentaram animosidades e forneceram ao movimento jihadista munição propagandística para justificar seus ataques antirrussos. A histórica influência de Moscou na Síria, antigo reduto do grupo EI, coloca a Rússia no topo da lista de alvos.

    Essa escalada pode desencadear uma estratégia de segurança russa mais agressiva, com o potencial de piorar ainda mais a situação já tensa na Ucrânia. A Rússia pode intensificar suas respostas militares ou de segurança, colocando em risco a estabilidade da Europa Oriental. Afinal, se Putin não conseguir demonstrar força contra um inimigo das sombras, como o grupo EI, essa ira será direcionada para o alvo mais imediato: a Ucrânia.

    Além disso, esse grande ataque em Moscou pode encorajar o movimento jihadista e suas filiais a expandir suas atividades pela Europa, trazendo à tona lembranças de seus ataques letais anteriores em cidades como Paris e Nice.

    Conflito checheno-russo

    Soma-se a isso a história do conflito checheno-russo, marcada por duas guerras brutais após a dissolução soviética, que perpetuou a insurgência e a militância. Esse contexto oferece ao grupo EI oportunidades de explorar o descontentamento local contra o domínio russo, potencialmente fundindo as forças insurgentes locais com as redes jihadistas globais.

    O relacionamento capenga entre a Rússia e os Estados Unidos ganha mais um elo de ligação por meio do ataque terrorista de Moscou. Por um lado, o compartilhamento de inteligência e a necessidade de colaboração no combate ao terrorismo poderiam aproximar as duas nações, fornecendo um ponto em comum apesar das tensões geopolíticas existentes.

    No entanto, a guerra na Ucrânia, visões de mundo antagônicas, a expansão da Otan e abordagens opostas para conflitos internacionais, criam obstáculos significativos para uma eventual cooperação. Neste contexto, o ataque do grupo EI apresenta uma oportunidade para o diálogo e o engajamento diplomático, mas ambas as nações terão que navegar habilmente em um delicado ato de equilíbrio entre seus interesses de segurança imediatos e suas estratégias geopolíticas mais amplas - o que é altamente improvável.

    O futuro do relacionamento Rússia-Estados Unidos dependerá, em grande parte, de como eles gerenciam essa dinâmica e seus interesses de curto prazo. Certamente, o cenário não parece propício para isso.

  • O resultado da eleição legislativa de 10 de março passado em Portugal provocou uma onda de comentários assinalando o progresso da extrema direita no país. O partido Chega, liderado pelo jurista André Ventura, obteve 18,06% dos votos, conseguindo o terceiro lugar e catapultando seu número de deputados na Assembleia da República para 49 entre 230. Alguns comentaristas chegaram a afirmar que, ainda que não venha a fazer parte do futuro governo, o Chega e Ventura foram os grandes vencedores do pleito, e provavelmente serão o fiel da balança no parlamento.

    Flávio Aguiar, analista político

    Ao mesmo tempo, o resultado eleitoral expôs o dilema da Aliança Democrática, de centro-direita, liderada pelo Partido Social-Democrata que, apesar do seu nome, pertence ao campo conservador tradicional. A AD ficou com 29,49% dos votos e 79 deputados, apenas 2 a mais do que o Partido Socialista, de centro-esquerda, que ficou com 77 deputados e 28,66% dos votos, numa diferença mínima de 0,83% em relação ao vencedor.

    A AD vê-se agora diante do dilema: ou negocia com o Chega para governar ou com seus tradicionais adversários, os socialistas. Ou ainda assume governar em minoria, tendo de negociar caso a caso com estes dois contendores, além dos pequenos partidos que, seja à direita, seja à esquerda, não têm condições para oferecer uma maioria estável de votos.

    De momento, o líder da AD, Luís Montenegro, do Partido Social-Democrata, anunciou que não pretende formar uma aliança com o Chega. Sua posição é frágil, pois, por exemplo, se não conseguir aprovar o Orçamento, o presidente do país, Marcelo Rebelo de Sousa, será forçado a chamar novas eleições.

    A situação complicada de Montenegro em Portugal é a mesma de outros líderes conservadores tradicionais na Europa. A extrema direita é parte integrante do governo conservador na Finlândia e dá apoio decisivo para o governo igualmente conservador na Suécia. A ultra-direitista Giorgia Meloni, com seu partido Fratelli d’Italia, atropelou os demais conservadores e lidera hoje o governo em Roma, saindo de 1,9% dos votos e nenhum deputado eleito em 2013 para 26% em 2022, com 26 deputados.

    Na Espanha o tradicional Partido Popular aceita negociar regionalmente com o Vox, que se declara herdeiro do Falangismo do ditador Francisco Franco.

    Na Holanda, o radical Gert Wilders desistiu de formar um governo por falta de alianças, mas a situação dos demais partidos está longe de ser confortável.

    Na França Marine Le Pen, do Rassemblement National (Reunião Nacional) vem crescendo de eleição para eleição presidencial, e é uma séria candidata na próxima, prevista para 2027.

    Na Alemanha, o Alternative für Deutschland, que tem membros acusados de serem neonazistas, é a segunda força eleitoral nas atuais pesquisas de intenção de voto para 2025. Na União Democrata Cristã, da direita tradicional, a posição ainda dominante é a de não negociar com o AfD, mas há correntes dentro do partido que admitem essa possibilidade.

    Na Áustria o Partido da Liberdade, radical de direita, é o líder em intenções de voto nas eleições previstas para o segundo semestre deste ano e, se confirmar esta posição, deverá propor uma aliança com o tradicional direitista Partido do Povo.

    Por trás deste crescimento da extrema direita tirando votos de todos os partidos mas, sobretudo, da direita tradicional, jaz uma condição que raramente é comentada nas mídias mainstream da Europa e também de outros continentes.

    União Europeia

    A Europa tem um carro-chefe, que é a União Europeia. Esta começou a ser construída após o fim da Segunda Guerra, num momento em que na Europa Ocidental o pensamento hegemônico, mesmo entre os conservadores, era de raiz social-democrata, com suas consistentes politicas sociais, como uma alternativa ao comunismo dominante na “outra Europa”, a Oriental, sob a batuta da hoje extinta União Soviética.

    Entretanto, ela foi criada formalmente pelo Tratado de Maastricht, assinado em 7 de fevereiro de 1992 e em vigor a partir de novembro do ano seguinte. Nesta altura, a União Soviética já não existia, o mundo comunista se esboroava e a hegemonia do pensamento social-democrata na Europa entrava em declínio. Em seu lugar crescia a hegemonia do pensamento neo-liberal, com seus planos de austeridade e o retraimento das políticas sociais, criando passo a passo uma sensação de insegurança e desamparo. A atual guerra na Ucrânia acentuou esta sensação, promovendo saltos inflacionários em toda a parte e empurrando o continente para um beco recessivo.

    Ou seja, a política economicamente conservadora que se impôs na União e na Europa do século XXI minou as bases dos políticos conservadores tradicionais, levando de roldão os social-democratas, verdes e socialistas que também foram enfraquecendo suas plataformas sociais. As esquerdas, divididas, não têm conseguido se afirmar como opção. As extremas direitas começaram a faturar votos, com suas bandeiras fáceis e simplistas de xenofobia, nacionalismos excludentes e dúvidas quanto a própria União.

    Seguindo uma triste tradição, diante de crises econômicas profundas a Europa volta a adernar para a direita radical e busca um culpado “diferente”. Antes foram os judeus; hoje são os muçulmanos, os imigrantes ou refugiados do “Sul do Mundo”. E os conservadores tradicionais se vêem diante do impasse: se forem mais para a direita, poderão ser engolidos pela extrema direita; se permanecerem onde estão, pode lhes suceder o mesmo… Poderão dar um salto mágico, mudando suas políticas e sua forma de pensar, contribuindo para a sobrevivência de uma Europa democrática? Só podemos glosar o poeta português Fernando Pessoa: “Tudo é incerto e derradeiro/Tudo é disperso, nada é inteiro/Ó Europa, hoje és nevoeiro”.

  • No tumultuado cenário da política moderna, onde a integridade pessoal e a lealdade partidária frequentemente colidem, o endosso de Mitch McConnell à candidatura presidencial de Donald Trump representa uma profunda ilustração dessa inquietante tendência.

    Thiago de Aragão, analista político

    Esse endosso, aparentemente em desacordo com as críticas anteriores de McConnell a Trump — especialmente após o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro — marca um momento decisivo na trajetória do Partido Republicano e levanta graves preocupações sobre o estado da democracia americana e os compromissos éticos que os líderes estão dispostos a fazer em busca do poder.

    Como figura reverenciada no Senado, conhecido por sua destreza estratégica e perspicácia política, McConnell parece ter subordinado os princípios morais e democráticos à lealdade partidária e ao canto sedutor do domínio político. Sua inicial condenação do papel de Trump no ataque ao Capitólio havia sublinhado um compromisso em salvaguardar a integridade da democracia americana. No entanto, seu posterior endosso revela uma contraditória marcante, destacando uma disposição em ignorar ações condenadas em prol da conveniência política.

    Talvez o mais perturbador seja a disposição de McConnell em abraçar Trump, apesar dos ataques pessoais do ex-presidente contra ele e sua família, incluindo insultos racistas direcionados a sua esposa, Elaine Chao. Essa prontidão em ignorar tais profundos insultos pessoais em nome do alinhamento político ilustra um aspecto desolador da política contemporânea: o valor decrescente atribuído à dignidade pessoal, ao respeito e aos padrões éticos. Essa dinâmica transcende o cálculo individual de McConnell e simboliza uma tendência mais ampla, onde os imperativos da sobrevivência política parecem se sobrepor aos princípios fundamentais.

    Os fins justificam os meios

    A transição da oposição principista para o endosso relutante é indicativa das poderosas forças da pressão política e do temor da ostracização dentro das fileiras partidárias. As manobras de McConnell sugerem uma priorização estratégica das perspectivas eleitorais do GOP, aparentemente à custa da saúde mais ampla da democracia americana. A mensagem implícita é inquietante: os fins justificam os meios, mesmo que esses meios impliquem um comprometimento dos ideais democráticos e dos padrões éticos que os líderes supostamente se comprometem a defender.

    Além disso, o apoio de McConnell a Trump, em meio à retórica divisiva em curso e após um prolongado período de não comunicação, incita a reflexão sobre o papel da liderança na moldagem do discurso político e da direção partidária. Esse endosso tacitamente sinaliza um retorno à política contenciosa e polarizadora que marcou o mandato de Trump, com pouca consideração pelas potenciais repercussões de longo prazo tanto para o partido quanto para a nação. A surpresa não é o apoio de um ex-Presidente do Senado a Trump, mas particularmente de Mitch McConnell a Trump.

    Esse cenário não é meramente uma questão de realinhamento político, mas um reflexo dos desafios que enfrentam a governança democrática. Ilustra como a estratégia política e a busca pelo poder podem eclipsar os compromissos com os princípios democráticos e a conduta ética. O endosso de McConnell não é apenas uma manobra política, mas uma manifestação dos profundos dilemas éticos e democráticos que a sociedade americana enfrenta.

    A postura de McConnell serve como um duro lembrete de um cenário político onde o poder frequentemente prevalece sobre o princípio. Como participantes desse experimento democrático, é imperativo avaliar criticamente as motivações e ações de nossos líderes, conscientes do impacto significativo que essas decisões têm na integridade e no futuro da democracia americana. A verdadeira vergonha da posição de McConnell não reside apenas em sua contradição inerente, mas na mensagem mais ampla que transmite sobre o sistema político americano — um sistema em que ganhos políticos de curto prazo são buscados à custa dos valores democráticos de longo prazo e da governança ética. Principalmente após as falas públicas de McConnell contra Trump e de Trump contra McConnell e sua esposa.

  • Intimidação, ameaças com armas de fogo, telefones grampeados, criminalização de ativistas dos direitos humanos. Não, não estamos falando de acontecimentos em alguma ditadura na América Latina, África ou Ásia. Estamos nos referindo a denúncias de práticas que estão ocorrendo no coração da Europa democrática.

    Flávio Aguiar, analista político

    A denúncia consta de relatório recentemente divulgado por Dunja Mijatovic, desde 2018 Alta Comissária eleita do Conselho Europeu de Direitos Humanos, que faz parte da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. Apesar do nome, esta organização atua também na América do Norte e na Ásia.

    Nascida na Bósnia e professora da Universidade de Sarajevo, especialista em regulação da mídia e liberdade de expressão, Dunja Mijatovic tem um longo currículo de atuação em favor dos direitos humanos em organizações europeias.

    Em seu relatório, ela denuncia que diferentes governos do continente europeu vêm tomando atitudes ameaçadoras contra ativistas e organizações que militam na proteção dos direitos de refugiados, asilados ou solicitantes de asilo e migrantes em geral.

    A denúncia destaca que o problema é agudo em países como Hungria, Grécia, Lituânia, Itália, Croácia e Polônia.

    "Adversárias"

    Tais ativistas e organizações não governamentais são percebidas muitas vezes oficialmente como “adversárias” de políticas que visam restringir ou coibir a vinda de migrantes legais ou ilegais para a Europa, sobretudo se oriundos de países da África, do Oriente Médio ou da Ásia. Este enfoque fragiliza os direitos dos ativistas e dos migrantes, facilitando que se tornem alvo de todo o tipo de intimidação e ameaças.

    Não raro são vítimas de espancamentos, vandalismo, incêndios criminosos, destruição de equipamentos e veículos e até ataques com bombas, como o que ocorreu em 5 de janeiro contra a Kisa, uma ONG de direitos humanos que atua no Chipre. Em 2020, a Kisa teve seu credenciamento cancelado pelo governo cipriota por tecnicalidades burocráticas, o que foi alvo de denúncias também pela organização Human Rights Watch e pela representante local da Anistia Internacional.

    Tais casos se agravam pela crescente militarização da vigilância contra os migrantes nas fronteiras de diferentes países, com a construção de cercas, muros e o envio de tropas de exército para estas regiões.

    Este aspecto é tema do filme “Zielonica Granica”, “Fronteira Verde”, dirigido pela cineasta polonesa Agnieszka Holland. O filme acompanha refugiados provenientes da Síria e do Afeganistão, que se veem prisioneiros de um conflito político entre os governos da Belarus e da Polônia na fronteira entre os dois países, perseguidos violentamente pelas forças policiais de ambos.

    Tais denúncias se referem também a episódios de falta de socorro aos refugiados que tentam atravessar o mar Mediterrâneo da África para a Europa, e ao estímulo de políticas repressivas em países como a Líbia e a Tunísia.

    O caso se complica porque existe uma política oficial de desestímulo às migrações provenientes do “Sul do mundo” por parte de autoridades da União Europeia, além de uma pressão por mais repressão contra os migrantes por parte de partidos de extrema direita em vários países do continente.

    Muitas organizações e ativistas de direitos humanos denunciam que há um traço adicional de racismo em tais políticas repressivas, uma vez que elas contrastam com a calorosa recepção oferecida nestes países aos refugiados ucranianos porque estes “são europeus como nós”: esta é a “vox populi” recorrente nestes casos.

  • À medida que o mundo acompanha o desenrolar da eleição presidencial na Rússia, prevista para o mês de março, fica claro que 2024 pode ser um ano estratégico para Vladimir Putin. A eleição, que deve estender o governo de Putin até a década de 2030, parece ser mais uma formalidade constitucional do que um concurso democrático, com o sistema eleitoral russo firmemente sob o controle do presidente.

    Thiago de Aragão, analista político

    Diante deste cenário, a possibilidade do retorno de Donald Trump à Casa Branca poderia significativamente realçar a posição geopolítica de Putin, especialmente em relação à guerra em andamento na Ucrânia e a paisagem mais ampla das relações internacionais.

    A potencial presidência de Trump pesa enormemente sobre o futuro da política externa dos EUA, particularmente em relação à Rússia e à Ucrânia. Seu mandato anterior foi marcado por uma postura notavelmente suave em relação a Putin, levantando preocupações entre aliados internacionais sobre a consistência do apoio dos EUA sob sua liderança.

    Trump sugeriu abertamente que consideraria retirar o apoio à Ucrânia em sua guerra contra a agressão russa, uma medida que, sem dúvida, inclinaria o equilíbrio a favor das ambições de Putin no Leste Europeu. Recentemente disse que a Rússia poderia ter caminho livre para fazer o que quisesse com os países da OTAN que não pagassem mais para estar dentro da aliança.

    Para Putin, a vitória de Trump nas eleições dos EUA poderia representar uma oportunidade de avançar os interesses russos com menos restrições. A perspectiva de uma presidência de Trump também abre a porta para a Rússia aprimorar sua relação com a China, fortalecendo ainda mais a aliança entre Moscou e Pequim. Esta parceria em ascensão poderia ser significativamente reforçada pela abordagem isolacionista de Trump, que no passado incluiu ceticismo em relação à OTAN e ambivalência sobre compromissos militares dos EUA no exterior.

    Além disso, a abordagem de Trump à política externa poderia levar a um enfraquecimento das relações com a Europa, bem como com muitos aliados asiáticos. Tal mudança alinharia perfeitamente com os objetivos estratégicos de Putin, pois um Ocidente dividido e distraído proporcionaria à Rússia maior latitude para afirmar sua influência não apenas em sua vizinhança imediata, mas também no palco global.

    A postura suave em relação a Putin que Trump provavelmente adotaria, combinada com suas tendências ao isolamento, serviria assim para realinhar alianças globais e estruturas de poder de maneiras que poderiam ser altamente vantajosas para a Rússia. Ao criar uma divisão entre os Estados Unidos e seus aliados tradicionais, e ao diminuir potencialmente o papel dos EUA em arranjos de segurança internacional, as políticas de Trump poderiam inadvertidamente fortalecer a parceria estratégica entre Rússia e China, apresentando um contrapeso formidável à influência ocidental.

    Este potencial realinhamento teria implicações profundas para a estabilidade global e a ordem internacional. Com a Europa potencialmente distanciada dos EUA e aliados asiáticos reavaliando seus compromissos de segurança, Putin poderia se encontrar em uma posição significativamente fortalecida para perseguir suas ambições regionais e globais, sabendo que se trataria de uma oportunidade única e boa demais para deixar passar. Este cenário seria um vento favorável estratégico para a Rússia, permitindo a Putin capitalizar em mudanças geopolíticas que colocariam a Rússia num papel de influência, além de projetar ambições ainda maiores com aliados poderosos como a China.

    À medida que esses eventos se desenrolam, a comunidade internacional deve permanecer vigilante, compreendendo que os resultados dessas eleições têm implicações de longo alcance além das fronteiras nacionais. A possibilidade de uma postura mais suave dos EUA em relação a Putin sob Trump, combinada com um eixo Rússia-China mais forte, poderia encorajar regimes autoritários, desafiar instituições democráticas e remodelar a ordem global com consequências duradouras para a paz e segurança internacionais.

  • Em uma demonstração do que só pode ser descrito como uma aula de imprudência diplomática, Donald J. Trump, o ex-presidente dos EUA que aspira retornar à Casa Branca, mais uma vez conseguiu deixar a comunidade global boquiaberta. Desta vez, sugerindo que prefere sacrificar o compromisso de defesa coletiva da Otan, se isso atender aos seus caprichos.

    Thiago de Aragão, de Washington

    Em um comício recente, Trump propôs, de maneira descompromissada, dar à Rússia luz verde para "fazer o que bem entender" com os países da Otan que não abrem suas carteiras o suficiente, virando as costas efetivamente para décadas de compromissos dos EUA em apoiar seus aliados. Essa nova abordagem da política externa bem que poderia enviar o delicado equilíbrio da diplomacia global para fora de seu eixo.

    Jens Stoltenberg, o Secretário-Geral da Otan, juntamente com um coro de líderes globais e a própria Casa Branca, foram rápidos em condenar as declarações de Trump, classificando-as de "terríveis" a "desconexas". Parece que a disposição de Trump para arriscar a segurança global em favor de ganhar pontos políticos não passou despercebida. Sua visão transacional das alianças internacionais — reduzindo a complexa dança da política global a meros sinais de dólar — demonstra um profundo mal entendido tanto do conceito de segurança coletiva quanto da importância estratégica da unidade, conforme delineado no Artigo 5 do tratado da Otan.

    Em um momento em que a Otan está ampliando seus horizontes para lidar com ameaças da China e fortalecer laços com nações no Indo-Pacífico, a retórica divisiva de Trump não poderia estar mais deslocada. Ela ameaça minar a confiança e cooperação cruciais para enfrentar tudo, desde a agressão russa até os desafios estratégicos impostos pela China. Além disso, à medida que a Otan se solidariza com a Ucrânia contra a invasão russa, a atitude despreocupada de Trump em relação aos princípios fundamentais da aliança encoraja agressores e sinaliza uma potencial fratura na frente unida da Otan — uma perspectiva tão alarmante quanto perigosa.

    Resumindo, a mais recente incursão de Trump na política externa parece menos uma estratégia bem pensada e mais uma aposta de alto risco com a segurança do mundo inteiro. É um lembrete contundente de que o mundo poderia dispensar um líder cuja ideia de construção de alianças é semelhante a escolher times em um jogo de escola, com pouca consideração pelas consequências. À medida que o mundo enfrenta desafios sem precedentes, a importância de alianças sólidas como a Otan, construídas sobre o suporte e defesa mútuos, nunca foi tão clara.

  • A Europa continental foi cenário nos últimos dias de um crescimento exponencial dos protestos sociais, sobretudo nos transportes e no setor agrícola.

    Flávio Aguiar, analista político

    Na Alemanha houve a paralisação sucessiva do sistema ferroviário nacional, dos aeroportos e por fim do transporte urbano em Berlim durante algumas horas da manhã de sexta-feira passada. O motivo: reivindicações salariais e de melhores condições de trabalho.

    A Covid-19 deixou de ser o fantasma fatal de tempos atrás, mas continua penalizando trabalhadores que se vêm impossibilitados de desempenhar suas funções, sobrecarregando os demais. E conta, nesta época do ano, com seu aliado o inverno europeu, que, com fortes resfriados, também vai levando trabalhadores ao repouso forçado.

    Na Finlândia também houve uma paralisação total na semana, que passou com sindicatos de várias categorias protestando contra um projeto do governo conservador que visa restringir o direito de greve e reduzir o seguro-desemprego. A paralisação atingiu sobretudo o sistema de transporte público.

    Mas a estrela da semana foi mesmo o setor agrícola. O movimento começou na Alemanha, onde os agricultores paralisaram, com seus tratores, estradas e o acesso a vilas e cidades. Logo ele se alastrou por quase toda a Europa continental, da Polônia à Península Ibérica, com fortes manifestações na França e em Bruxelas, na Bélgica, onde os manifestantes atearam fogueiras diante da sede executiva da União Europeia.

    Agricultores cercaram Paris

    Na França, os agricultores ameaçaram cercar e isolar Paris. Não chegaram a tanto, mas entre protestos e até prisões de manifestantes, conseguiram mobilizar o governo de Emmanuel Macron, que se prontificou a lutar contra a aprovação do acordo de livre-comércio com o Mercosul e rever as novas limitações que pretendia impor ao uso de agrotóxicos, o que provocou novos protestos, desta vez dos ecologistas. Além disto, a União Europeia se comprometeu a investir mais algumas centenas de milhões de euros em subsídios ao setor.

    Além de se sentirem ameaçados pela temida concorrência com os agricultores do Mercosul, a insatisfação dos europeus têm outros motivos. Dados oficiais dizem que 15% de sua renda vem dos subsídios governamentais e da UE para o setor.

    Os agricultores alegam que tal subsídio vem se mostrando insuficiente para enfrentar a alta da inflação, sobretudo no custo dos combustíveis, principalmente o diesel, e dos fertilizantes, cuja alta deriva de sua relativa escassez graças à guerra na Ucrânia. Protestam também diante do que veem como uma concorrência ameaçadora por parte dos produtos agrícolas deste país, isentos de impostos pela União Europeia como forma de ajudá-lo na guerra com a Rússia.

    Outro ponto de desacordo está nas limitações ecológicas que, segundo os agricultores, encarecem demasiadamente seus produtos. O movimento põe em risco as medidas de proteção ao meio ambiente adotadas dentro da UE.

    Insatisfação persiste

    A insatisfação e os protestos ameaçam continuar, apesar das medidas atenuadoras de governos e da UE, e se alastrar a outras categorias. Oficialmente o continente europeu, como um todo, não está em recessão econômica, embora sua principal economia, a alemã, esteja. Mas a crise é um fato inarredável do cotidiano, liderada pelos custos dramaticamente crescentes da energia, dos alimentos, e das despesas com saúde e habitação.

    No outro lado do Canal da Mancha, no Reino Unido, os protestos no setor da saúde são constantes e a crise econômica ameaça a hegemonia do Partido Conservador, no poder desde 2010.

    Politicamente, na Europa Continental nota-se uma tentativa, por parte dos partidos de extrema direita, como o Rassemblement National na França e o Alternative fúr Deutschland na Alemanha, no sentido de capitalizar a insatisfação e os protestos, sobretudo dos agricultores, vistos como um setor mais conservador do que os trabalhadores urbanos.

    Em breve haverá uma possibilidade de medir se terão sucesso ou não, com as eleições para o Parlamento Europeu em junho deste ano.

  • O recente ataque com drones na Jordânia, que resultou na morte de três militares americanos, marca uma escalada significativa nas tensões do Oriente Médio. A crise, que vem se acentuando nos últimos meses, exige uma análise matizada e uma reavaliação estratégica.

    Thiago de Aragão, analista político

    Do ponto de vista geopolítico, o ataque, reivindicado pela Resistência Islâmica no Iraque, uma aliança de grupos armados pró-Irã, não é apenas mais um incidente na longa história deste conflito regional. O incidente representa uma mudança crucial na dinâmica de poder no Oriente Médio. O alvo de um posto militar dos Estados Unidos perto da fronteira entre a Jordânia e a Síria, conhecido como Torre 22, sublinha a expansão do raio de ação das milícias apoiadas pelo Irã e sua disposição para confrontar diretamente os interesses dos Estados Unidos na região.

    A resposta de Washington, conforme expressa pelo presidente Joe Biden e pelo secretário de Defesa Lloyd Austin, sugere uma reação militar inevitável. No entanto, como analista político, argumento que este incidente necessita de uma reflexão mais profunda sobre as implicações mais amplas da estratégia militar dos Estados Unidos no Oriente Médio.

    A presença americana na região, há muito tempo justificada com base no combate ao terrorismo e na estabilização do Oriente Médio, muitas vezes se depara com complexidades que desafiam respostas militares tradicionais. O ataque na Jordânia exemplifica a intrincada teia de política regional, onde o engajamento militar americano, embora destinado a deter ameaças, muitas vezes se enreda em lutas de poder locais e regionais.

    Risco de escalada de tensão

    Ao considerarmos as possíveis repercussões de uma resposta militar de Washington, o risco de uma escalada adicional não pode ser ignorado. A retaliação, embora satisfaça os chamados imediatos por justiça, poderia mergulhar a região em um conflito mais profundo. Também poderia fornecer material para o sentimento antiamericano, frequentemente explorado por grupos como os responsáveis pelo ataque na Jordânia.

    Além disso, este incidente deve provocar uma reavaliação da estratégia de longo prazo dos Estados Unidos no Oriente Médio. A abordagem tradicional do poder militar, embora essencial em certos contextos, precisa ser complementada com iniciativas diplomáticas e uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociopolíticas da região. O envolvimento com aliados regionais, estratégias de resolução de conflitos e o enfrentamento das causas raízes da instabilidade devem ser parte integrante desta reavaliação.

    O papel dos atores regionais, como a Arábia Saudita e Israel, na formação das políticas dos Estados Unidos no Oriente Médio, também merece atenção. Seus interesses geopolíticos e dinâmicas com o Irã influenciam significativamente a estabilidade regional e, por extensão, a política externa americana. Uma abordagem matizada, considerando essas perspectivas regionais, é crucial na formulação de uma resposta que não apenas aborde a ameaça imediata, mas também contribua para a estabilidade de longo prazo na região.

    Em conclusão, o ataque de drone na Jordânia é mais do que um chamado às armas: é um chamado para a introspecção estratégica e recalibração da política dos Estados Unidos no Oriente Médio. Este incidente oferece uma oportunidade para Washington redefinir seu papel e abordagem em uma região que continua sendo um ponto quente geopolítico global.

  • Na semana passada realizou-se a 54ª edição do encontro anual promovido pelo Fórum Econômico Mundial na cidade de Davos, nos Alpes suíços. O Fórum Econômico Mundial é uma Organização Não-Governamental criada em 1971 pelo empresário e professor de Economia Klaus Schwab, de nacionalidade alemã, com sede na cidade de Cologny, também na Suíça, perto de Genebra. Schwab preside a ONG e o encontro até hoje.

    Flávio Aguiar, analista político

    Entre os objetivos da ONG está o de promover iniciativas de governança global baseadas em princípios do liberalismo econômico. Para tanto reúne anualmente cerca de 3.000 empresários, governantes, acadêmicos, lideranças globais, jornalistas e demais “influenciadores” (para usar uma palavra da moda) que durante cinco dias debatem temas da atualidade em centenas de mesas.

    Com a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991, o Fórum de Davos tornou-se uma "menina dos olhos" do capitalismo triunfante na Guerra Fria. Naquele momento, o cientista político norte-americano Francis Fukuyama chegou a proclamar o “fim da história”, afirmando que o capitalismo liberal do Ocidente e sua forma de democracia eram o estado social definitivo da humanidade.

    Ao lado dos entusiastas do Fórum Econômico Mundial cresceram também seus críticos, vendo nele a formação de uma elite “desnacionalizada” sem compromissos sociais que não os de natureza apenas retórica. Fruto destas críticas nasceu seu contraponto, o Fórum Social Mundial, criado em 2001 em Porto Alegre, no Brasil. O FSM reuniu desde sempre um número expressivo de ONGs, sindicalistas, militantes de movimentos sociais e políticos em geral de esquerda. Já na sua primeira edição o FSM reuniu cerca de 20.000 participantes.

    Em alguns momentos em que as datas de realização dos dois fóruns coincidiram, chegou a acontecer um diálogo virtual entre os participantes de cada um. Neste ano o FSM se reunirá no Nepal, na Ásia, entre 15 e 19 de fevereiro. Aliás, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, é dos poucos líderes mundiais com presença marcante em ambos os Fóruns, embora estivesse ausente nesta edição do de Davos em 2024.

    Inteligência Artificial

    Desta vez, vários comentaristas concordaram que a grande estrela dos debates foi a Inteligência Artificial, suas vantagens, conquistas e também seus problemas. Ressaltou-se a sua capacidade relâmpago de criar “fake news” e mundos imaginários num ano em que processos eleitorais de grande alcance envolvem 40% da humanidade, em todos os continentes regularmente habitados.

    Também foram marcantes as presenças do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como sempre passando seu chapéu em busca de financiamento e mais armas para a guerra de seu país contra a Rússia, e a do recém-empossado presidente da Argentina, o ultra-liberal Javier Milei, propagandeando seu anarco-capitalismo e chegando ao ponto de afirmar que o próprio Fórum de Davos se apresentava contaminado por algo que chamou de “coletivismo” e “socialismo” - coisa que provocou aplausos e risos ao mesmo tempo.

    Mas houve duas outras "presenças marcantes" nas mesas, nos corredores e nos encontros sociais do Fórum: os ausentes Donald Trump e Vladimir Putin.

    Trump foi uma espécie de aparição fantasmagórica, com o risco de seu retorno à Casa Branca e seus princípios de “America First” e desprezo por fóruns internacionais - o que, de certo modo, inclui Davos.

    Por outro lado, Putin - que já foi convidado ao Fórum e dirigiu-lhe a palavra em 2009 - foi eleito pelos comentários gerais como o inimigo n* 1 dos princípios de Davos.

    Foi tal a hostilidade em relação ao presidente russo que circulou nos corredores, de modo insistente, a proposta de expropriar os 350 bilhões de dólares das reservas internacionais da Rússia para aplicá-los na guerra e na recuperação da Ucrânia.

    Uma ideia semelhante já ocorrera antes em relação às reservas em ouro da Venezuela no Banco da Inglaterra, para entregá-las ao então líder oposicionista Juan Guaidó, hoje desacreditado por seus próprios ex-seguidores.

    Tais propostas contêm um paradoxo. Aparentemente a expropriação de capitais, uma prática antes defendida por organizações revolucionárias de esquerda, passou a ser uma bandeira seletiva de lideranças do Ocidente capitalista, para ser aplicada contra quem considerem um inimigo.

  • Em 2024, a alta da temperatura mundial deverá bater novo recorde e o ano será marcado por novos eventos climáticos extremos. Será também um ano de turbulências na geopolítica e economia mundiais, acredita o analista de política internacional da RFI.

    Flávio Aguiar, analista político

    Todos os meteorologistas concordam quanto à previsão de que 2024 será um ano mais quente do que 2023, que já foi o ano mais quente da história pelo menos desde que os registros regulares de temperatura começaram a ser feitos no século 19.

    Há divergências quanto ao nível de aumento da temperatura. Os mais extremados afirmam que 2024 pode ser o ano em que a média dos 12 meses ultrapasse 1,5°C acima da chamada média pré-industrial. O limite de 1,5°C foi o acordado em Paris, no ano de 2015, para impedir uma catástrofe climática maior, que aumente o risco de vida do nosso já combalido planeta.

    De todo modo, se aquela previsão se confirmar, 2024 será, como 2023, um ano marcado por excessos: inundações, ciclones, avalanches de neve e deslizamentos de terra em toda parte.

    Brics ampliado

    A economia mundial promete também alguns confrontos aquecidos. O ano começa com a expansão do grupo conhecido como Brics, que até agora reunia Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Passam a integrá-lo o Irã, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Etiópia e o Egito.

    Apesar da desistência da Argentina de Javier Milei, que preferiu não entrar no bloco por razões ideológicas, esse Brics ampliado passa a representar 36% do Produto Nacional Bruto contra 31% do G7, grupo que reúne as nações mais ricas e industrializadas do planeta. O novo grupo representa 46% da população mundial, contra 10% do G7, e produz 40% do óleo bruto e gás do mundo.

    São países muito diferentes entre si, mas que desejam implementar um banco alternativo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, além de desejarem instituir novas moedas de negociação internacional, para além do dólar norte-americano.

    Disputas eleitorais

    2024 será marcado também por grandes disputas eleitorais nacionais em quatro dos cinco continentes. A exceção fica por conta da Oceania.

    Nas Américas, haverá eleição nos Estados Unidos e a questão que se coloca neste momento é se Donald Trump poderá participar ou não da votação. Também haverá eleição no México, onde pela primeira vez duas mulheres disputarão a presidência: Claudia Sheinbaum, pelo partido no poder de esquerda, e Xóchitl Gálvez, pela oposição de direita. Haverá ainda eleições gerais no Uruguai e na Venezuela.

    Na África, eleições gerais ou presidenciais acontecem na Argélia, Moçambique, Tunísia e África do Sul. Na Ásia será a vez da Indonésia, Irã, Paquistão, Taiwan e Índia, onde o partido do primeiro-ministro Narendra Modi enfrentará uma frente unificada dos 26 partidos de oposição.

    Na Europa ocorrem eleições gerais na Bélgica, Áustria, Finlândia, Geórgia, Islândia e Portugal. Em junho haverá eleição para o Parlamento Europeu, prevendo-se o crescimento da bancada de extrema direita.

    Na Rússia, país que ocupa dois continentes, haverá eleição presidencial em março, com Vladimir Putin tentando seu quinto mandato.

    Guerras

    Prosseguem as duas principais guerras do momento. Na Europa, a da Ucrânia versus Rússia, com dúvidas sobre se prevalecerá no mesmo nível o apoio financeiro e bélico dos países da Otan ao governo de Kiev.

    No Oriente Médio, o conflito entre Israel e o grupo Hamas já provocou mais de mil mortos civis israelenses e duas dezenas de milhares de mortos civis em Gaza, sobretudo de mulheres e crianças. A situação humanitária no enclave palestino é terrível.

    E o novo ano começou mal para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e seu governo de extrema direita. No dia 1° de janeiro, o Supremo Tribunal de Israel declarou inconstitucional a projetada reforma do sistema judicial do país, que retiraria poderes do judiciário em favor dos poderes executivo e legislativo.

    Não há ainda um horizonte de paz ou pelo menos de cessar-fogo para essas duas guerras.

    Paris 2024

    Para sairmos do âmbito catastrófico, vale registrar que Paris sediará dois eventos de importância mundial, um no campo esportivo e outro no artístico.

    Em julho e agosto a capital francesa será a sede dos Jogos Olímpicos de Verão. No correr do ano, o Musée d’Orsay oferecerá uma exposição comemorativa dos 150 anos do lançamento da arte impressionista, um evento que reuniu pintores rejeitados pelo Salão Oficial de Paris da época, com nomes como Renoir, Monet, Cézanne, Degas, Sisley, Pissarro, Sisley, Guillaumin e Morisot. A exposição de 1874 aconteceu no salão do fotógrafo Nadar.

    Como começamos esta resenha de previsões para este ano falando do meio ambiente, lembremos, para terminar, que diversas associações e agências governamentais prometem atacar de frente o acúmulo de plásticos nos oceanos e de microplásticos em toda parte, outra ameaça grave à saúde humana e ao planeta.

  • 2023 termina como um ano marcado por extremos, para onde quer que se olhe. Guerras e conflitos armados, internacionais e intranacionais, ou sua ameaça, estiveram e estão presentes em todos os cinco continentes regularmente habitados. Dois destes conflitos se destacaram durante este ano. São: a já prolongada guerra na Ucrânia, envolvendo diretamente este país e a Rússia e indiretamente os aliados e fornecedores de armamentos e recursos para o primeiro; e a guerra recentemente iniciada ou reiniciada entre Israel e o grupo Hamas, conflito que também arrisca ser prolongado.

    Flavio Aguiar, analista político

    A guerra na Ucrânia entrou num impasse. O ano começou com uma planejada contraofensiva por parte da Ucrânia, que prometia ser espetacular. Ela empacou, para dizer o mínimo, sem conseguir ganhos significativos até o momento. Na frente econômica e política, o conflito também empacou.

    As sanções econômicas e políticas impostas ao presidente Vladimir Putin e à Rússia não parecem ter abalado nem o prestígio interno daquele nem o desempenho desta. Ambos se aproximaram mais da China e as sanções não contam com um apoio significativo de países fora do círculo dito ocidental, liderado pelos Estados Unidos.

    Além disso, a guerra na Ucrânia se viu ofuscada pela emergência do segundo conflito entre Israel e o Hamas. No momento, o governo de Kiev luta por manter-se à tona nas atenções mundiais, diante da fadiga provocada pelo prolongamento do conflito, seu alto custo financeiro e a falta de ganhos significativos no campo de batalha.

    Israel x Hamas

    A guerra entre Israel e o Hamas começou desta vez pelo ataque terrorista deste grupo em 7 de outubro, invadindo aquele país e produzindo cerca de 1.200 mortos, na maioria civis israelenses. O ataque provocou uma reação imediata de apoio a Israel.

    Entretanto, este apoio vem perdendo força rapidamente, devido à brutalidade e a extensão da resposta do governo de Benjamin Netanyahu, atingindo de modo indiscriminado a população civil da Faixa de Gaza e também, ainda que em menor escala, na Cisjordânia ocupada, provocando cerca de duas dezenas de milhares de vítimas fatais, em grande parte crianças e mulheres.

    Também chama a atenção o elevado número de mortes entre médicos, paramédicos e jornalistas em Gaza, além da destruição de grande parte da sua infraestrutura e do deslocamento forçado de sua população civil.

    Na Europa, este conflito estimulou a intensificação do tradicional antissemitismo contra judeus e suas instituições, como sinagogas e cemitérios, mas também estimulou a islamofobia. Esta última forma de intolerância ganhou mais força graças à tendência, em quase todo o continente, de partidos e movimentos de extrema direita para “cancelar” seu passado antissemita e aproximar-se de Israel.

    Por outro lado, em muitos países europeus registraram-se manifestações massivas em favor dos direitos dos palestinos e de um cessar-fogo humanitário em Gaza. Muitas vezes esses manifestantes foram reprimidos pela polícia e condenados por autoridades sob a alegação de que supostamente abririam espaço para manifestações em favor do Hamas ou antissemitas.

    A extrema direita continuou crescendo na Europa, em duas frentes. Em eleições, ela vem ganhando cada vez mais espaço e votos, como na Holanda, onde o Partido da Liberdade, liderado por Geert Wilders, foi o mais votado no recente pleito nacional.

    Ao mesmo tempo, ela vem tendo sucesso em liderar a pauta anti-imigrantes e refugiados oriundos de fora do continente, com muitos países adotando medidas cada vez mais duras e restritivas contra eles. Por outro lado, ela perdeu o governo polonês, em favor de uma coligação mais próxima do centro, liderada por Donald Tusk.

    Inteligência Artificial e Meio Ambiente

    Na área tecnológica, 2023 foi um ano marcado pelas discussões éticas em torno do uso da chamada Inteligência Artificial. Louva-se seu uso prático em áreas como saúde e pesquisas científicas, dentre outras.

    Entretanto, manifesta-se preocupação pela possibilidade de seu uso repressivo no campo político, como as técnicas de reconhecimento facial, que podem abrir caminho para racismos e outras formas de discriminação. Neste mês de dezembro a Comissão e o Parlamento Europeu anunciaram que adotarão em breve um código de ética para o setor, que seria o primeiro no gênero em todo o mundo.

    Na frente climática, 2023 foi um ano marcado por um sem número de inundações no planeta, sintoma do crescente aquecimento global. A realização da COP28 em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, renovou a esperança de que algo venha de fato a ser feito para contê-lo. Apesar da timidez dos termos da declaração final, foi a primeira vez em que o tema dos combustíveis de origem fóssil e de seus problemas esteve no centro das atenções.

    Por último, mas não menos importante nesta rápida resenha de 2023, cabe registrar o retorno significativo do Brasil à cena política mundial, depois dos anos de ostracismo e isolamento, devido à mediocridade da política externa do governo anterior.

  • No dia 17 de dezembro de 2023, os chilenos rejeitaram, por uma margem de 56% a 44%, a proposta de nova Constituição elaborada pelo Conselho Constitucional. Este é o segundo fracasso consecutivo de um processo constituinte no país, após o resultado negativo do plebiscito de 2022.

    Thiago de Aragão, analista político

    A rejeição da nova proposta da Constituição é um duro golpe para a democracia chilena. Ela reflete a profunda polarização política que o país vive, bem como a crescente desconfiança da população nas instituições democráticas. Existem algumas lições importantes que podemos tirar desse processo no Chile.

    A primeira lição é que a polarização extrema mina a confiança cidadã na real importância das transformações propostas. No caso chileno, as propostas apresentadas pela Assembleia Constituinte em 2022 e 2023 foram extremamente polarizadas, com uma visão radical de esquerda e outra radical de direita. Essa polarização, juntamente com o abandono da proposta apresentada em 2018, contribuiu para minar a fé dos cidadãos na real importância das transformações propostas.

    A polarização é um fenômeno comum em democracias representativas, mas ela pode ser especialmente prejudicial em processos constituintes. Isso ocorre porque as constituições são documentos que buscam estabelecer um consenso sobre os valores e princípios que regem uma sociedade. Quando a polarização é extrema, torna-se difícil encontrar um denominador comum que seja aceito por uma maioria significativa da população.

    Fake news

    A desinformação é outro desafio importante. A campanha eleitoral para o plebiscito foi marcada pela disseminação de notícias falsas e boatos sobre a proposta constitucional. Isso contribuiu para confundir a população e dificultar o processo de tomada de decisão.

    Esse processo de fake news é disseminado por uma variedade de atores, incluindo políticos, grupos de interesse e indivíduos. Ela é facilitada pelo uso das mídias sociais, que permitem a rápida disseminação de informações sem validade alguma.

    O resultado do plebiscito também reflete a crescente desconfiança da população nas instituições democráticas. A Constituição de 1980, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet, é amplamente considerada ilegítima pela população. O processo constituinte de 2020-2022 foi visto por muitos como uma oportunidade de corrigir os erros do passado.

    No entanto, o fracasso do processo constituinte agravou a crise de confiança. Muitos chilenos acreditam que as elites políticas são incapazes de produzir um texto constitucional que seja aceitável para a maioria da população.

    A segunda lição é que a necessidade de os partidos políticos consolidarem sua presença territorial e entenderem melhor as necessidades cidadãs é urgente. O processo constituinte se encerrou com milhões de chilenos optando por partidos como a Lista del Pueblo, de esquerda radical, e o Partido Republicano, de extrema direita, mostrando um vazio político em busca de referências sólidas.

    A legitimidade da democracia representativa depende da representação efetiva dos interesses dos cidadãos. Quando os partidos políticos não conseguem conectar-se com as preocupações da população, eles perdem a legitimidade e a confiança dos cidadãos.

    No caso chileno, a polarização do processo constituinte contribuiu para a fragmentação do sistema partidário. Isso tornou mais difícil para os partidos políticos representarem os interesses da população de forma efetiva.

    Crise de confiança

    O fracasso do processo constituinte é um momento de reflexão para a democracia chilena. O país precisa encontrar uma forma de superar a crise de confiança e de fortalecer as instituições democráticas.

    Uma possível solução seria retomar o processo constituinte, mas desta vez com um enfoque mais moderado e consensual. Os partidos políticos deveriam deixar de lado suas diferenças ideológicas e se concentrar nos temas que unam a maioria dos chilenos.

    Outra possível solução seria continuar reformando a Constituição de 1980 de forma gradual. Essa opção seria mais realista, já que seria mais fácil alcançar um consenso entre os partidos políticos. As reformas poderiam incluir medidas para fortalecer os direitos humanos, os direitos sociais e a democracia representativa.

    Qualquer solução que for adotada, é importante que o processo seja transparente e participativo. A população deve ter a oportunidade de se envolver na discussão e de fazer suas vozes serem ouvidas.

    O fracasso do processo constituinte é uma oportunidade para a democracia chilena aprender com seus erros. Se os partidos políticos, as instituições públicas e a população puderem trabalhar juntos para superar a crise de confiança, o país poderá construir um futuro mais justo e equitativo para todos.

    A terceira lição é que as necessidades concretas dos cidadãos devem ser o foco central da ação política e ser atendidas com seriedade e eficácia. O governo deve mostrar resultados tangíveis, especialmente nas áreas de educação e segurança. Declarações pós-eleitorais dos líderes dos partidos devem ter correspondência em ações legislativas e na gestão de agendas colaborativas.

    A democracia representativa só é legítima se for capaz de atender às necessidades dos cidadãos. Quando o governo não consegue mostrar resultados tangíveis, ele perde a confiança dos cidadãos.

    No caso chileno, a rejeição da proposta constitucional foi em parte motivada pela percepção de que o processo não estava atendendo às necessidades dos cidadãos. A população chilena está preocupada com questões como desigualdade, acesso à educação e segurança pública. O governo chileno precisa mostrar resultados concretos na resolução desses problemas.

    O futuro da democracia chilena precisa de vários pontos de convergência entre governo e oposição, mas também de algumas renovações básicas para que a principal parte nessa equação democrática, a sociedade, entenda e participe sem depender de alucinações cada vez mais típicas da esquerda e da direita na América Latina.

    Reformar o sistema eleitoral

    O sistema eleitoral atual é majoritário, o que favorece a fragmentação política e dificulta a formação de maiorias estáveis. Uma reforma para introduzir um sistema proporcional seria mais favorável à representação da diversidade de opiniões da população.

    Fortalecer os partidos políticos

    Os partidos políticos são essenciais para a democracia, pois são responsáveis por organizar a representação dos interesses da sociedade. No entanto, os partidos políticos chilenos estão enfraquecidos, o que dificulta a formação de consensos. É preciso fortalecer os partidos políticos, tornando-os mais inclusivos e representativos da diversidade da sociedade.

    Promover a educação cívica

    É importante que a população esteja informada sobre os seus direitos e deveres cívicos. A educação cívica deve ser promovida nas escolas e na sociedade civil, para que as pessoas possam participar ativamente da vida democrática.

    A democracia chilena está em um momento crítico. O fracasso do processo constituinte é um sinal de que o país precisa enfrentar desafios importantes. No entanto, também é uma oportunidade para a democracia chilena aprender com seus erros e construir um futuro mais justo e equitativo para todos.

  • Uma guerra pode fazer todo tipo de vítimas, não apenas mortos e feridos no campo de batalha ou entre os civis próximos. A Alemanha se orgulha por ser um país de cena cultural aberta e livre, sobretudo depois da reunificação levada a cabo em 1991. Entretanto, no passado recente, artistas e intelectuais têm manifestado preocupação diante do que descrevem como um clima de “repressão” por acusações que consideram exageradas de antissemitismo, o que teria se acentuado a partir de outubro deste ano, com o conflito envolvendo o Hamas, o governo israelense, o ataque terrorista de 7 de outubro e o bombardeio e ocupação da Faixa de Gaza, com vítimas civis tanto do lado israelense quanto do palestino.

    Flávio Aguiar, analista político

    A reclamação dos artistas e intelectuais alcançou repercussão internacional graças a um artigo no New York Review of Books (19/10/2023) e uma reportagem no The New York Times (7 e 8/12/2023).

    O artigo é assinado por Susan Neiman, de origem judaica, diretora do Einstein Forum, organização acadêmica com sede em Potsdam, ao lado de Berlim, voltada para a cooperação internacional. Nele, a autora deplora que o esforço por combater o antissemitismo descambou para uma às vezes velada, às vezes ostensiva repressão contra quem manifeste críticas a Israel e ao governo israelense.

    Uma das bases deste desvirtuamento estaria em resolução adotada pelo Parlamento Federal que considera qualquer forma de boicote a Israel como um ato antissemita; outra base seria também a consideração de que a segurança de Israel tornou-se uma “razão de Estado” na Alemanha, o que implica um apoio incondicional às ações daquele país e de seu governo. A partir daí, qualquer declaração ou ação de artistas ou intelectuais que propiciem uma acusação ou sequer suspeita de antissemitismo leva à exclusão dos autores dos planos de fomento - financiamento - público de atividades culturais, venham a acusação ou a suspeita de onde vierem. Aponta ela que esta prática vem ocorrendo já há alguns anos no país.

    Casos

    A reportagem do The New York Times lista uma série de casos de artistas que tiveram exposições ou premiações canceladas, ou suspensas por fazerem declarações consideradas hostis a Israel depois do ataque de 7 de outubro e da retaliação israelense em Gaza e na Cisjordânia ocupada. Também comparece à lista pelo menos um caso de artista que fez anos atrás uma declaração considerada hostil a Israel.

    Um dos casos mais contundentes listados no jornal é o da artista judia sul-africana Candice Breitz que, por ter criticado a retaliação de Israel em Gaza, teve sua exposição, prevista para 2024, cancelada no estado de Saarland. Diga-se de passagem que a exposição nada tinha a ver com a questão palestina ou israelense, versando sobre prostituição na África do Sul.

    O antissemitismo continua sendo um problema ora latente, ora explícito na Alemanha, assim como em outros países, e merece repulsa, assim como a islamofobia ou qualquer outra forma de discriminação racial, cultural, política, religiosa, de gênero ou ainda outras. O problema, aponta Neiman em seu artigo, é que esta preocupação vem descambando para o que chama de uma forma de “histeria” que promove ou aceita qualquer tipo de denúncia, com ou sem fundamento, como motivo suficiente para cancelar atividades ou personalidades de iniciativas culturais.

    Artistas e intelectuais de origem judaica, além de outras e outros, têm se manifestado em favor do diálogo ao invés da exclusão. A ministra da Cultura alemã, Claudia Roth, também se manifestou em favor de uma maior tolerância, afirmando que a exclusão deva ser um último recurso, ao invés de algo liminar. Entretanto, o problema persiste, uma vez que curadores de arte e diretores de museus ou outras instituições culturais temem perder o apoio institucional caso alguma de suas atividades levante uma sombra de suspeita de antissemitismo.

    Problema também em outros países

    O problema não é só da Alemanha. Em novembro, o conhecido artista chinês Ai Wei Wei, que apoia as reivindicações dos palestinos, teve uma exposição em Londres cancelada porque seus patrocinadores consideraram que este não era “o momento oportuno” para fazê-la, diante de apreensões por ele formuladas sobre a situação dos palestinos na Faixa de Gaza. Disseram respeitar o artista, e que considerariam a conveniência de retomar a iniciativa em outra ocasião.

    Nos Estados Unidos, denúncias da deputada do Partido Republicano por Nova York Elise Stefanik, uma entusiasta apoiadora de Donald Trump, levaram à convocação pela Câmara de três presidentas de universidades norte-americanas, Harvard, Princeton e o MIT, Massachussets Institute of Technoogy.

    As três foram acusadas de não porem ênfase suficiente na condenação do eventual ou suposto antissemitismo em manifestações pró-palestinos entre seus estudantes. Em consequência, a presidenta da Universidade de Princeton, Elizabeth Magill, renunciou. A deputada republicana comemorou: “Uma já foi”. Há quem veja nisto o renascimento do macarthismo repressivo dos anos 50, de triste memória.

  • Segundo Caracas, mais de 95% dos eleitores apoiaram a proposta de criar a província venezuelana do Essequibo no referendo realizado neste domingo (3). A disputa territorial entre a Venezuela e a Guiana gera tensão na região e preocupa a comunidade internacional. O analista político da RFI, Thiago de Aragão, avalia que o litígio coloca o Brasil em uma situação desconfortável.

    Thiago de Aragão, analista político

    A América do Sul tem sido palco de uma disputa complexa entre a Venezuela e a Guiana, centrada em um referendo realizado neste domigno, que poderia resultar na anexação de territórios em disputa. No entanto, essa disputa ganhou uma nova dimensão com a decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ) de se opor ao referendo e a eventual anexação do Essequibo. Além disso, um importante ator internacional, a multinacional Exxon, desempenha um papel crucial nesse cenário.

    Enquanto o embaixador venezuelano, Carlos Amador Pérez Silva, enfatiza que a Venezuela não tem intenção de invadir a Guiana, as suspeitas de que membros do governo venezuelano estão envolvidos em atividades ilegais, como a exploração de ouro, levantam desconfiança sobre as ações da Venezuela na região. É essencial compreender o contexto interno da Venezuela para entender plenamente a situação.

    O governo de Nicolas Maduro enfrenta desafios crescentes, incluindo recursos financeiros cada vez mais escassos devido à falta de capacidade de gestão e altos níveis de corrupção. A economia está em colapso, o que leva a um desespero crescente para manter-se no poder.

    Nesse contexto, a ameaça de invasão à Guiana pode ser vista como uma cortina de fumaça para desviar a atenção da população venezuelana de seus problemas internos. Cogitar uma invasão é uma estratégia desesperada de um governo que luta para lidar com questões econômicas e políticas cada vez mais espinhosas.

    Capacidade militar: uma comparação desigual

    Ao avaliar a capacidade militar da Venezuela em comparação com a Guiana, fica evidente que a Venezuela possui uma vantagem significativa. A Venezuela tem uma força militar muito maior e mais bem equipada, incluindo um exército consideravelmente maior em termos de pessoal e equipamento. Por outro lado, a Guiana possui uma força militar muito menor em termos de pessoal e equipamento. Sua capacidade de defesa é limitada em comparação com a Venezuela, tornando-a vulnerável a qualquer ameaça militar significativa.

    A Guiana tem cerca de 3.000 soldados equipados com veículos de combate, enquanto a Venezuela possui um contingente militar muito maior, com aproximadamente 123.000 militares distribuídos em várias ramificações.

    O exército venezuelano está equipado com uma variedade de veículos militares, incluindo 173 tanques de batalha principais (MBTs), como AMX-30V e T-72B1, bem como veículos de reconhecimento, veículos de combate de infantaria (IFVs) e veículos de transporte de pessoal blindados (APCs).

    Fator Internacional e a desesperança de Maduro

    Diante dessa disparidade na capacidade militar, é importante reconhecer que a Venezuela, se desejasse invadir a Guiana, teria a capacidade de fazê-lo. No entanto, o fato de a Venezuela alardear o referendo e a decisão da CIJ de rejeitar a organização da consulta popular indicam que uma invasão não é o caminho escolhido. A comunidade internacional desempenha um papel fundamental em desencorajar qualquer ação militar.

    Os Estados Unidos e outros países têm se manifestado contra qualquer agressão e em apoio à soberania da Guiana. Essa pressão internacional desempenha um papel significativo em manter a estabilidade na região.

    Além disso, o papel da Exxon, que é a maior exploradora de petróleo na Guiana, torna a situação ainda mais complexa. A multinacional americana possui seu maior investimento no mundo nesse país. Essa presença maciça da Exxon na Guiana é um fator que coloca ainda mais pressão sobre a Venezuela, por conta da importância estratégica da Guiana para os EUA.

    Situação delicada para o Brasil

    No entanto, a situação também coloca o Brasil, sob o governo do presidente Lula, em uma posição desconfortável. O Brasil é um aliado de longa data de Nicolas Maduro, mas compreende que não há argumentação legítima por parte da Venezuela para realizar tal provocação contra a Guiana. O país se encontra em uma delicada encruzilhada, buscando equilibrar suas relações regionais enquanto defende os princípios de paz e resolução diplomática de disputas.

    À medida que essa disputa complexa se desenrola, é crucial manter um olhar crítico sobre a situação, lembrando que a desconfiança em relação ao governo venezuelano e suas verdadeiras intenções não pode ser ignorada. A Guiana, nossa vizinha na região, deve continuar a buscar soluções que garantam sua segurança e soberania, enquanto mantém a porta aberta para o diálogo e a diplomacia. A América do Sul enfrenta desafios complexos, mas a busca pela paz e pela resolução pacífica de disputas deve sempre prevalecer.

  • A extrema direita europeia comemora duas vitórias seguidas. A primeira aconteceu além-mar: a de Javier Milei na distante Argentina. A segunda foi em casa: a vitória do Partido pela Liberdade, do radical Geert Wilders, na Holanda. Há traços em comum em ambas as vitórias.

    Flávio Aguiar, analista político

    A de Milei teve uma diferença de votos em relação a seu rival Sergio Massa, muito maior do que a prevista nas pesquisas de opinião que lhe eram favoráveis, havendo outras que davam a vitória ao adversário. A de Wilders surpreendeu mais ainda os institutos de pesquisa, pois estes o colocavam num modesto quarto lugar na fragmentada política holandesa, onde há uma miríade de partidos pequenos, médios e grandes.

    Qual o traço em comum?

    As extremas direitas desfrutam do que se pode chamar de um “voto escondido”, que só aparece no momento decisivo da eleição.

    Provavelmente entre os que se declaram “indecisos”, talvez também entre os que declaram a intenção de votar em branco ou de anular o voto. Há também a migração de parte do voto conservador nos partidos tradicionais, mais ainda para a direita. Outro traço em comum está no emprego de certas palavras-chave, como a de “mudança” ou de “desconfiança” em relação à política e políticos tradicionais.

    A extrema direita parece capitalizar, em momentos de profunda crise econômica, o descontentamento e a desilusão com a política e os políticos como um todo: é o chamado “voto no outsider”, ou “aquele que vem de fora do sistema”, o que não deixa de ser uma ilusão, pois os políticos que tiram vantagem deste estado de espírito em geral crescem dentro deste mesmo “sistema”.

    Tal foi o caso de Milei, cuja carreira política começou na mídia, mas enveredou pelo parlamento nacional em 2021.

    Wilders é um político veterano, dos mais antigos na política holandesa. No Brasil, o próprio Jair Bolsonaro desfrutou de anos como deputado no Congresso Nacional.

    Diferenças

    Mas entre Milei e Wilders há também algumas diferenças notáveis. O primeiro radicalizou o quanto pôde suas declarações polêmicas durante a campanha presidencial, atacando ferozmente tudo e todos, inclusive os políticos conservadores que depois vieram a apoiá-lo no segundo turno, contra o candidato de centro-esquerda.

    Já Wilders, nesta campanha de 2023, digamos, “amaciou” seu discurso. Conhecido inimigo de imigrantes e refugiados, islamofóbico, defensor histórico de propostas como a de proibir mesquitas e o próprio Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, começou a dizer que pretendia “governar para todos os holandeses”, independentemente de origem ou religião. A tal ponto chegou sua conversão a este novo perfil, que seus adversários chegaram a dizer que ele pretendia passar por uma “Madre Teresa” na política.

    Outra diferença significativa está na natureza da própria eleição. No sistema presidencialista argentino, Milei foi eleito diretamente chefe de Estado, embora seu partido seja absolutamente minoritário no parlamento, o que aponta para uma necessária negociação com as forças conservadoras tradicionais no país (se ele a fará é outro capítulo desta história).

    Nacionalismos

    Já no fragmentado quadro político holandês, o partido de Wilders foi o mais votado, mas alcançou 37 cadeiras das 150 cadeiras da Câmara Baixa. Os partidos conservadores tradicionais mostram-se recalcitrantes em aceitá-lo como futuro primeiro-ministro, o que pode colocá-lo na difícil posição de “ganhar, mas não levar” no cômputo político definitivo.

    E tais processos e procedimentos na Holanda costumam ser muito complicados: a coalizão que ora deixa o poder levou quase um ano para ser negociada, e se desfez em poucas semanas, o que levou a esta eleição que favoreceu Wilders e seu partido radical. Seja como fôr, a eleição holandesa mostra a força crescente da extrema-direita numa Europa que enfrenta uma situação econômica muito difícil.

    Mesmo que não ganhe ou não leve, é ela que vem ditando a pauta política, brandindo a xenofobia, ou seja, a rejeição a estrangeiros, sejam refugiados ou imigrantes, a rejeição ao Islã e, com maior ou menor veemência, a desconfiança quanto à União Europeia.

    Aliás, durante sua campanha, Wilders anunciou que, caso chegasse ao governo, promoveria um plebiscito sobre a permanência da Holanda na União Europeia, o que mostra que os velhos nacionalismos estreitos, que devastaram o continente tantas vezes no passado, continuam na espreita.

  • No cenário político atual, a reunião entre Joe Biden e Xi Jinping em São Francisco assume um papel crucial, especialmente considerando as próximas eleições presidenciais dos EUA em 2024. Este encontro, que ocorreu à margem da cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), reuniu os líderes das duas maiores economias mundiais, abordando temas cruciais como comércio, tecnologia, direitos humanos e questões territoriais.

    Thiago de Aragão, analista político

    Embora não se esperasse grandes acordos ou anúncios, a ênfase foi dada na manutenção de linhas de comunicação abertas para evitar um clima de conflito aberto. Esse diálogo pode ser interpretado como uma tentativa de Biden de equilibrar a rivalidade competitiva com a China, mantendo uma postura firme, mas evitando o agravamento das tensões, especialmente em áreas sensíveis como Taiwan e o Mar do Sul da China.

    Para Biden, a gestão desta relação bilateral é crítica, considerando a aproximação das eleições presidenciais. A maneira como ele navega nesse relacionamento com a China pode influenciar significativamente a percepção do público americano sobre sua capacidade de lidar com desafios internacionais complexos. Um equilíbrio cuidadoso é necessário para evitar o agravamento das tensões, ao mesmo tempo em que defende os interesses americanos.

    Impacto na corrida eleitoral

    O encontro também teve um foco em questões de cooperação global, como a luta contra as alterações climáticas e o tráfico de fentanil. Esses temas são importantes tanto para a política interna quanto para a imagem internacional dos EUA, e podem servir como áreas de colaboração potencialmente benéfica para ambas as nações.

    No entanto, com as eleições presidenciais de Taiwan em 2024 e a possibilidade de um retorno de Donald Trump à Casa Branca, o ano promete ser repleto de incertezas.

    A abordagem de Biden em relação à China, especialmente nas questões de Taiwan e direitos humanos, pode ter implicações profundas na corrida eleitoral, possivelmente influenciando a escolha dos eleitores americanos.

    Em resumo, a reunião entre Biden e Xi em São Francisco, embora discreta em termos de resultados tangíveis, é um momento significativo na política externa dos EUA.

    As repercussões deste diálogo podem se estender até as eleições presidenciais de 2024, afetando a narrativa política e a percepção pública sobre a eficácia do governo Biden no cenário internacional.

  • A guerra no Oriente Médio está provocando uma maior inclinação do eixo de grande parte da extrema direita europeia para o lado israelense do conflito.

    Flávio Aguiar, analista político

    O caso mais chamativo desta tendência é o da líder do Rassemblement National - Reunião Nacional - francês, Marine Le Pen. Em declarações à imprensa e no Parlamento Nacional ela manifestou seu apoio irrestrito à sobrevivência de Israel e o seu “direito à auto-defesa”.

    Jordan Bardella, o presidente do Partido, complementou: “Para muitos judeus franceses o Reunião Nacional representa um escudo contra a ideologia islamista”.

    Críticos da líder francesa veem neste seu movimento uma tentativa - que qualificam como “demagógica” - de apagar o passado antissemita do partido, quando se chamava “Frente Nacional” e era liderado por seu pai, Jean-Marie Le Pen, condenado em processos por minimizar o Holocausto.

    Apontam que ela está mirando a eleição presidencial de 2027, quando o atual presidente, Emmanuel Macron, não poderá concorrer, uma vez que a Constituição francesa proíbe o exercício de mais de dois mandatos presidenciais consecutivos. E lembram que de eleição em eleição os votos em Le Pen vem crescendo continuamente.

    Itália, Espanha e Alemanha

    Na Itália, o líder do partido Lega, Matteo Salvini, igualmente de extrema direita, também se posicionou ao lado de Israel numa manifestação por ele convocada na cidade de Milão. Foi cauteloso ao afirmar que “o inimigo não é o Islã, mas o extremismo islamista”.

    Na Hungria não houve surpresas. O primeiro-ministro Viktor Orbán é um antigo aliado não só de Israel, mas da direita israelense, e um ardoroso defensor da “civilização europeia”. E não tardou em declarar que qualquer manifestação que apoiasse o “terrorismo do Hamas” seria proibida. Assim mesmo, destacou que deveria haver ajuda humanitária à população civil de Gaza.

    O caso mais contundente deste apoio de extrema direita a Israel veio do espanhol Vox, que se declara herdeiro do franquismo falangista e até dos Cavaleiros Templários da Idade Média. O secretário-geral do partido, Ignacio Garrido, acusou o governo socialista do primeiro-ministro Pedro Sánchez e Yolanda Diaz, a líder do Sumar, uma coalizão de esquerda que apoia o governo, de supostamente “justificarem” os ataques do Hamas.

    O líder do Partido e deputado Santiago Abascal chegou a dizer que “se possível devia-se matar os terroristas antes que eles matassem inocentes”, numa tirada que lembra o filme “Minority Report”, em que potenciais criminosos eram “neutralizados” antes que cometessem seus supostos crimes.

    O Vox se comprometeu igualmente a apresentar um projeto de lei ao Parlamento proibindo a imigração proveniente de “países de cultura islâmica enquanto não se possa assegurar sua integração”, seja lá o que isto signifique.

    Na Alemanha a situação se apresentou de modo um pouco mais complexo. No Bundestag, o Parlamento Federal, o líder do AfD, Alternative für Deutschland, Alexander Gauland, declarou que “o ataque [do Hamas] não atingiu apenas Israel, ele nos atingiu também; Israel é o Ocidente numa vizinhança que rejeita e combate o Ocidente”.

    Já o presidente do partido, Tino Chrupalla, condenou o ataque, mas ressaltou que o momento é “para a diplomacia”. Outros membros do partido criticaram esta sua declaração, inclusive um grupo auto-intitulado “Judeus com o AfD”. Deve-se ressaltar que recentemente membros do partido foram acusados e processados como defensores, simultaneamente, de antissemitismo e de islamofobia.

    Posição semelhante de dirigentes

    Uma observação: em grande parte, exageros retóricos à parte, estas posições de partidos de extrema direita na Europa não diferem substancialmente das posições de grande parte dos governantes europeus e autoridades da União Europeia, embora estes últimos ponham mais ênfase nas preocupações humanitárias em relação aos civis de Gaza. Entretanto, elas apontam para a busca de apoio mais amplo nos países onde aqueles partidos de extrema direita atuam.

    Por outro lado, atividades racistas, sejam antissemitas, islamofóbicas ou outras contam com a participação de um sem número de pequenas células clandestinas, cujo comportamento frequentemente violento será certamente reforçado pela circunstância da guerra.

  • Em meio aos novos dados de seis estados-chave de batalha, onde o atual presidente enfrenta desafios em quatro, torna-se essencial focar em um elemento que se destaca na última pesquisa eleitoral realizada pelo The New York Times: a idade dos candidatos. Este fator crítico pode influenciar significativamente o cenário político futuro dos Estados Unidos, e levou David Axelrod, um destacado estrategista político democrata e ex-funcionário da Casa Branca, a fazer uma reflexão pública.

    Thiago de Aragão, analista político

    Entre os eleitores entrevistados, Trump lidera à frente de Biden em quatro dos seis estados estratégicos (Arizona, Geórgia, Nevada e Pensilvânia), empata em outro (Michigan) e perde de Biden em apenas um (Wisconsin). Em 2020, Trump perdeu em todos esses estados, mas agora suas vantagens nas pesquisas têm pelo menos 5 pontos percentuais, enquanto a vantagem de Biden em Wisconsin (2 pontos) está dentro da margem de erro da pesquisa.

    Esses números alarmantes levaram Axelrod a fazer uma ponderação pública no domingo (5). O democrata, mais conhecido por seu papel fundamental nas campanhas presidenciais de Barack Obama em 2008 e 2012, além de ter atuado como conselheiro sênior em sua administração, destacou que o presidente Joe Biden precisa ponderar cuidadosamente se deve prosseguir com sua candidatura à reeleição.

    "Apenas @JoeBiden pode tomar essa decisão," escreveu Axelrod em sua conta no X (antigo Twitter). "Se continuar concorrendo, ele será o candidato do Partido Democrata. O que ele precisa decidir é se isso é prudente, se está em SEU melhor interesse ou no interesse do país?"

    Mais notório por ser a figura motriz por trás das campanhas presidenciais bem-sucedidas de Barack Obama e por ter ocupado uma posição de alto conselheiro em sua administração, Axelrod estava reagindo às novas pesquisas do jornal The New York Times que mostravam Biden enfrentando dificuldades em estados-chave na disputa eleitoral contra o ex-presidente Donald Trump. Axelrod apresentou esses números como uma avaliação realista da situação.

    "É muito tarde para mudar de rumo," ele escreveu. "Muita coisa acontecerá no próximo ano que ninguém pode prever, e a equipe de Biden afirma que sua determinação em concorrer é firme", acrescentou.

    "Ele já desafiou a sabedoria convencional antes," continua Axelrod, "mas isso gerará tremores de dúvida no partido — não é 'alarmismo', mas uma preocupação legítima."

    Idade virou tema central da campanha

    A idade e as incertezas políticas são agora temas centrais à medida que as eleições de 2024 se aproximam, e a decisão de Biden terá um impacto significativo não apenas em sua trajetória pessoal, mas também no futuro político do país.

    Uma pergunta de grande relevância para as eleições de 2024 é: os eleitores estão dispostos a eleger um homem que terá 86 anos quando seu mandato terminar em janeiro de 2029? Um ano antes da votação, a resposta parece ser não. Sete em cada dez eleitores prováveis nos estados estratégicos concordam que Biden "é simplesmente velho demais para ser um presidente eficaz", enquanto apenas 28% discordam.

    Surpreendentemente, mesmo com apenas três anos a menos do que Biden, Trump é visto como um "jovem" em comparação ao rival. Somente 39% dizem que o principal candidato republicano "é simplesmente velho demais para ser um presidente eficaz," enquanto uma maioria de 58% discorda.