Afleveringen
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Para se ser um homem deste tempo ou até de outros, e variar, cumular, não basta estar vivo, como estamos todos, mais ou menos, tantos sem grande proveito, para si mesmos ou para a época, não basta isso, ainda é preciso ter ouvido, escutar a música que faz cada um, que fazemos todos, os que sabem arrancar notas ao seu instrumento, seja este qual for, ouvir como tudo isso depois se eleva, que sinfonia ou caos se gera... Se não se consegue uma harmonia de jeito, mas anda tudo aos encontrões, a produzir ruído, e se, muitas vezes, desencorajados, caímos no silêncio, acabamos sufocados debaixo do que cospe a telefonia. Ser de algum tempo é ser capaz de escutar e, ainda melhor que acompanhar, é achar a sua diferença, esse a mais capaz de impor uma inflexão, até valores próprios, chegar a conduzir num movimento ou noutro, disputar a batuta, ou desmoralizar o maestro, criar a sua escola, mesmo que pela calada, clandestina, sem horários, sem burocracia, só de impulso, paixão. Regatear com a época, dar-lhe o golpe, isso, sim, é tomar posição, extrair um sentido da geral, e compor mais que uma rima, uma solução, ou devotar-se à querela, aos embates, não conter na raiva, não se deixar abafar, mas explicar a liberdade por extenso, nos gestos, em actos. Inventar o seu carácter, produzi-lo na relação com os demais, como uma resposta, tendo em atenção aquilo que falta, tudo quanto nos sonegam, anulam. E aqui faça-se notar que a maior violência de todas pode ser o silêncio, apagar os outros, fingir que não se viu, distribuir a morte antes de tempo, vir aí fazer a sua justiça que passa apenas por cultivar relações, chegar aos lugares, e decretar o vazio, ainda lhe pôr em cima uma gente decorativa para irritar mais. Substitui-se com isto a vida por um desenho animado desses que passam só nos lares da terceira tentando empurrar de vez os velhos, neste país que se quer um imenso lar-fossa onde atirar quem nunca viveu. Esses que, por isso, muitas vezes mesmo que quisessem ir-se, acabar com isto, não sabem para que lado fica a morte. O combate está dificultado, hoje, mesmo por aqueles que lêem. O afastamento paga-se, a falta de um convívio sincero, truculento, animador já por si deixa as almas aí a criarem musgo, em vez de lhes arrancar as teias de aranha, as intrigas alimentadas em estado de paranóia, reforça-se a tibieza do carácter, a infantilidade nas convições. Ora, se a história da Cultura nos ensina alguma coisa "é a resolução das antinomias numa luta sem tréguas, é o combate implacável entre credos opostos", vinca Luiz Pacheco. Estão mal as coisas para quem veio para a literatura em busca de sinais dessa refrega. Estão pessimamente aqueles que, como ele, escolheram a literatura como um modo mais empenhado de superar o estilo gago da existência, e pôr algum sentido na trama dos dias. "Porque a minha vida, o meu trabalho (chamem-lhe ou não assim, pouco me importa) é escrever. Ler, para escrever. Ver, para escrever. E o que não sair em letras, está-me escrito na pele. Vida dura? acho que se percebe, tenho a pele curtida e colada aos ossos, mordida, alegrias, dores, frios e miséria." Estamos sobre o centenário daquele que mais intensa e empenhadamente zurziu no enredo que veio falsificar esta relação entre a vida e a literatura, todos esses modos de aliciamento e convite ao imobilismo, as estratégias de inibição e que trocam uma condição dinâmica e aberta a "um espontâneo movimento de polémica, de antagonismos inconciliáveis em riste", por um quadro de acomodação amorfa. Vimos assinalar aqui esta data, a intervenção e a coragem daquele que, como reconheceu muitas vezes, foi um tipo bera, um sacana, tendo sido capaz do pior, mas alguém que fez o que fez por se querer um tipo livre, "livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português". Assim, em vez de cerimónias o que temos é um grande bolo onde afundar a tromba de uns quantos, e quisemos tomar de novo o pulso a um meio literário cujas imposturas ele não se cansou de expor e atacar. De resto, prova da condição moribunda deste são os silêncios falaciosos que permitiram que no ano passado viesse a lume uma obra inteiramente inédita e ninguém lhe pegasse, mesmo se os seus livros continuam a ser traficados a alto preço nos alfarrabistas, e se lhe vai sendo rendido um culto que não anda longe daquela forma de exploração sistemática póstuma do maldito, como pôde antecipar, falando no "aproveitamento do seu caso humano (deturpando-o) ou da obra por ele legada (amputando-a mesmo assim; colhendo nela apenas o que convém aos tempos que correm) manipulada por seres mesquinhos e gulosos que a serem contemporâneos do maldito, seriam (eram, está-se mesmo a ver, a perceber) os seus mais ferozes inimigos". Para discutir o seu exemplo e os textos que nos legou, chamámos o tipo (João Pedro George) que mais atenção lhe deu, que mais contribuiu para que à volta da sua obra se pudesse gerar um debate sério, não forçando a hagiografia, mas discutindo os elementos mais espinhosos, entre eles a forma como a sua lenda em muitos aspectos se tornou um adorno do próprio enredo que ele tanto combateu.
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A um político nos nossos dias aquilo que deveríamos exigir antes de qualquer outra coisa é que tenha a disposição de acumular "um cadastro de prodígios", que o seu discurso se liberte do horizonte do provável, procurando formular uma profecia obscena e que passe pelo triunfo de uma voz maldita, de tal modo que aqueles que o oiçam se sintam já de certo modo culpados, capazes de vislumbrar essa realidade alternativa com uma precisão quase alucinante. Talvez não se possa resgatar a política sem uma boa dose de delírio, algo que não nos sujeite apenas à revelação do imediato. A voz deveria ser um modo de nos fazer ver o que está em falta, sobretudo tendo em conta que o quadro mediático tende a tornar irreal o próprio mundo. Como assinalava Steiner, "a televisão pode mostrar todos os massacres, todas as torturas e todos os acontecimentos de uma tal maneira que o imediato se torna para nós remoto, estranho e monstruoso, como se fôssemos crianças assustadas com o cair da noite". Talvez só restem como capazes de afectar a mudança aqueles discursos que possam aliciar-nos a mergulhar nesse território nocturno, reclamar de novo a heresia de viver a presença da queda. Aquele crítico recorda o exemplo de Claudel, acusado pelos seus detractores de uma heresia muito perigosa e grave: "acreditar não no céu, mas no inferno, acreditar no Mal, mas não no Bem". E Steiner tributava à sua época o conhecimento e o fascínio que sentia pelo mal. A verdade é que se pressente a impotência da política ou a sua profunda desonestidade por se limitar a falar em nome de uma inocência ou ingenuidade, e essa é a razão por que estamos desertos por ouvir vozes de outra ordem, que arrisquem suspender esse tom pastoso e cheio de boas intenções. "O papel que o artista desempenha na sociedade é o seguinte: redespertar os instintos anárquicos, primitivos, crucificados à ilusão de uma vida confortável", escreve Henry Miller. Fugindo ao ruído, a esse que domina o mercado como objecto de consumo indispensável, a arte surge como a possibilidade de uma paragem, uma intriga que encoraja em nós os actos que levem à destruição das condições úteis e necessárias ao dispositivo social. Há quem se satisfaça e regozije toda a vida com o mundo como ele se organizou, com o tempo como este ritmo que se infiltra nos corpos e soa tão alto que não deixa que quase ninguém escute os próprios pensamentos. Então, o que pedimos a uma suspensão abrupta? Que seja generosa, que cancele o ruído pelo tempo suficiente para que alguns possam voltar a reconhecer a voz que lhes é própria. Se alguns têm insistido que é preciso "organizar o pessimismo", "preparar-nos para sobreviver à cultura", há quem reconheça também como a cultura é precisamente aquilo que nos desmotiva, a tal coisa que vai embebendo o espírito, tornando-o pesado e impotente, sendo que, diante de uma ameaça terrífica, devemos apelar àquela vitalidade primitiva que age por impulso, com raiva, com uma ânsia absurda de esgotar em si todas as forças que lhe chegam como uma inspiração malévola. "De tanto viver nas trevas, acabámos por assinar um pacto com os monstros e as larvas que aí encontram abrigo. Esse pacto, temos agora de o romper e de nos atrever a olhar o dia, a fitar o nosso sol da Barbárie de frente" (Mohammed Dib). Deverá chegar um momento em que estejamos à altura de viver sem que tudo esteja já previsto de antemão, sem assumirmos que a melhor forma de se viver é com a captura total do dia de amanhã, sem margem para alguma dose de incerteza. Ao contrário do que se vem dizendo, talvez a nossa salvação tenha estado mais na hostilidade, e o bem seja uma província cercada pelo mal. Uma espécie de trégua entre adversários que aprenderam a temer-se. Neste episódio, vamos andar de volta das questões da habitação, e dos constrangimentos que o mercado tem imposto às cidades, ao ponto de, como um todo, as comunidades se terem visto expropriadas do espaço público, sendo-lhes retirada a capacidade de definir verdadeiras políticas de urbanismo. Quem nos veio dar algumas noções, algumas colheres de sopa numa ira que, às vezes, se fica pela saliva, foi o arquitecto e urbanista Tiago Mota Saraiva, um tipo que tem sabido aliar a sua acção profissional e enquanto professor a uma componente de intervenção e militância no sentido de combater a desigualdade e os vícios de um país que cada vez mais se divide entre os senhorios e os inquilinos de corda ao pescoço, entre outros ao deus-dará.
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Zijn er afleveringen die ontbreken?
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O que é decisivo transformar permanece quase sempre em segredo, leva o tempo necessário, não se apressa, mas, aos poucos, vai chegando à sua plenitude devastadora. Não leva tanto tempo como imaginam aqueles que preferem não pensar nisso, mas muitas vezes não chega a tempo de socorrer os que começam a sentir-se desesperados. Ainda assim há que aprender com essa espera, crescer com ela. Podemos ler sobre este movimento surdo no conto de duas cidades de Dickens, ouvir um diálogo entre esses que exigem que o tremor de terra cresça a ponto de engolir uma cidade. "Mas quanto tempo é preciso para que se dê um terramoto desses?", pergunta um deles. "Muitas vezes, leva bastante tempo. Mas quando chega a altura, quando ele vem, não demora muito a engolir a cidade, e faz em pedaços tudo o que encontra à sua frente. Entretanto, está sempre a preparar-se, embora não se veja nem se ouça. Esta é a vossa consolação. Guarda-a." É uma esperança diabólica. Algumas mulheres foram-se agarrando a isto, e quando falavam entre si, depois de dispensadas as ilusões de ordem romântica, detestavam ver-se vestidas por outros, envolvidas na miserável farpela que lhes foi destinada. Preferiam bater-se pela sua autonomia, pelas suas reivindicações profundas, mesmo que as expressassem desajeitadamente. "Na nossa época, para um espírito agudo, o ridículo, 'ser ridicularizado', é qualquer coisa de sublime. Sublime e inquietante", diz-nos Françoise Sagan. A partir do momento em que se reconhece que tudo isso que eles consideram “natural” não passa de uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica, só existe uma razão para cada homem ou mulher que aprenda a desenvolver a inteligência da sua sensibilidade. "E nesta posição desequilibrada, procurando a queda como quem procura um repouso, encontram-se muitos dos nossos contemporâneos", adianta a escritora francesa. "Ou por uma pata, e esqueçamos os loucos de amor, os que caem numa armadilha, os doentes graves e alguns poetas." O delírio tem mais a ver com fazer outra coisa da vida. Alguns só dão por si mesmos em intrigas mirabolantes, só por meio de alguma lenda acham uma forma de alívio face à linguagem e às instruções do inimigo, e dos seus constantes desafios para a luta, que podem fazer-nos alhearmo-nos das nossas próprias vidas, do caminho que deve ser traçado à parte. Mas então, como quem desenvolve interiormente um órgão capaz dos mais discretos milagres, a tristeza transforma-se em alegria, o luto em festa. Muitas vezes foi essa a trama de que se ocupavam as mulheres. Havia avisos contra isto e aquilo, prescrições para que levassem uma vida tão doméstica quanto possível, não exagerando os períodos de tempo entregues a actividades mais ambiciosas, intelectuais, sobretudo que houvesse o cuidado de não serem vistas com a caneta na mão, a redigir missivas demasiado extensas e sem um destinatário óbvio. "Pode-se saber tudo e, no fundo, recusar aceitar que a aniquilação das mulheres é a fonte de sentido e de identidade dos homens. Pode-se saber tudo e ainda assim querer desesperadamente não saber nada, porque enfrentar o que sabemos é questionar se a vida vale alguma coisa", escreve Andrea Dworkin. Não podemos substituir-nos, mas podemos ler-nos em voz alta, descrever os ritmos, os tons, o enredo ao nosso redor. As diferentes formas de pornografia, o seu elemento comum... "Há uma mensagem básica e transversal a todos os tipos de pornografia, desde o esterco que nos atiram à cara, até à pornografia artística, o tipo de pornografia que os intelectuais classificam como erostismo, passando pela pornografia infantil de baixo calão, e as revistas de 'entretenimento' masculino. A única mensagem que é transmitida em toda a pornografia a toda a hora é esta: ela quer; ela quer ser espancada; ela quer ser forçada; ela quer ser violada; ela quer ser brutalizada; ela quer ser magoada, ela quer ser ferida. Esta é a premissa, o elemento principal, de toda a pornografia. Ela quer que lhe façam estas coisas desprezíveis. Ela gosta. Ela gosta. Ela gosta de ser atingida e gosta de ser magoada e gosta de ser forçada." Como dela não há nada publicado entre nós, vale bem a pena dar-lhe alguma folga nesta língua: "Os pornógrafos, modernos e antigos, visuais e literários, vulgares e aristocráticos, apresentam uma proposta consistente: o prazer erótico para os homens deriva da destruição selvagem das mulheres e baseia-se nela. Como o pomógrafo mais honrado do mundo, o Marquês de Sade (apelidado por alguns académicos de 'O Divino Marquês'), escreveu num dos seus momentos mais contidos e bem-comportados: 'Não haveria uma mulher na terra a quem eu desse alguma vez motivo para se queixar dos meus serviços tivesse eu a certeza de a poder matar depois.' A erotização do assassínio é a essência da pornografia, como é a essência da vida. O torturador pode ser um polícia a arrancar as unhas à vítima numa cela de prisão ou um homem dito normal empenhado no projecto de tentar foder uma mulher até à morte. O facto é que o processo de matar (e tanto a violação como a agressão são etapas desse processo) é o principal acto sexual dos homens na realidade e/ou na imaginação. As mulheres, enquanto classe, têm de permanecer em cativeiro, sujeitas à vontade sexual dos homens, porque o conhecimento de um direito imperial de matar, seja ele exercido em toda a sua extensão ou apenas parcialmente, é necessário para alimentar o apetite e o comportamento sexuais. Sem as mulheres como vítimas potenciais ou reais, os homens são, no actual jargão higienizado, “sexualmente disfuncionais”. (...) A coisa mais terrível da pornografia é que ela diz a verdade masculina. A coisa mais insidiosa da pornografia é que ela conta a verdade masculina como se fosse uma verdade universal. Aquelas representações de mulheres acorrentadas a serem torturadas são supostamente representativas das nossas aspirações eróticas mais profundas. E algumas de nós acreditam nisso, não é verdade? O mais importante na pornografia é o facto de os valores nela contidos serem os valores comuns dos homens. Este é o facto crucial que tanto a direita masculina como a esquerda masculina, nas suas formas diferentes mas que se reforçam mutuamente, querem esconder das mulheres. A direita masculina quer esconder a pornografia, e a esquerda masculina quer esconder o seu significado. Ambas querem ter acesso à pornografia para que os homens possam ser encorajados e energizados por ela. Mas, quer vejamos a pornografia ou não, os valores nela expressos são os valores expressos nos actos de violação e de espancamento das mulheres, no sistema legal, na religião, na arte e na literatura, na discriminação económica sistemática contra as mulheres, nas academias moribundas, e pelos bons e sábios e amáveis e iluminados em todos estes campos e áreas. A pornografia não é um género de expressão separado e diferente do resto da vida; é um género de expressão em plena harmonia com qualquer cultura em que floresça. Isto é assim quer seja legal ou ilegal. E, em qualquer dos casos, a pornografia funciona para perpetuar a supremacia masculina e os crimes de violência contra as mulheres porque condiciona, treina, educa e inspira os homens a desprezarem as mulheres, a usarem as mulheres, a magoarem as mulheres. A pornografia existe porque os homens desprezam as mulheres, e os homens desprezam as mulheres em parte porque a pornografia existe." Já aqui fica qualquer coisa, e serve como um bom balanço para a conversa com Maria João Faustino, feminista da linha dura, o que quer apenas dizer que tem já um longo percurso feito no estudo da violência sexual, e está a par, não do discurso cheio de boas intenções, bons sentimentos, mas do que outras antes, igualmente empenhadas, foram escrevendo e manifestando, sempre com risco, sempre pagando o preço, e, além de saber ler os indíces, tem desenvolvido várias das questões que ainda só começam agora a ser tratadas superficialmente na comunicação social, como o tema do consentimento sexual. Além disso, o trabalho crítico pauta-se ainda pela colaboração com associações feministas e de apoio a vítimas e sobreviventes de violência sexual. -
Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas como esta em que parece mais fácil apontar aqueles que nos falham, em que vamos de ausência em ausência, e, numa altura em que a terra já vai parecendo escassa para enterrar tantos, fica-nos a sensação de que, deste lado, a própria luz parece arquivada, uma "luz-mortalha", para nos servirmos de uma expressão de Rui Nunes, um dos poucos que continuam a dar com o isqueiro nalgum cano e a transmitir o seu morse exasperado que soa pelo edifício e por trás do solene e displicente papel de parede. Diante do desconchavo de tudo, em vez de milagres, suplicamos por desastres que tomem conta de tudo, engulam a vida, façam um pouco de justiça, dando cabo dos planos a quem tem a arrogância de fazê-los, e que são, na sua maioria, os safardanas responsáveis pelo estado das coisas. Mas voltando a um desses impulsos plagiados, desta vez a partir do Vargas Llosa, já ia sendo altura de um romance arrancar por estas bandas questionando-se em que momento preciso é que Portugal se fodeu de vez, e isto homenageando também o coronel que tantas vezes deu trela a essa indagação, e apontou algumas datas, algumas hipóteses bastante firmes, fazendo-nos espreitar as coisas por uma brecha, ver como se deu cabo de um período de suspensão, de quase irrealidade e sonho, que se viveu por aqui durante uns quantos meses, tendo sido talvez a última possibilidade antes de sermos engolidos pela vertigem. Alguém nos avisou: "Quando o tempo for apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade, e quando o temporal, entendido como esse acontecer histórico, houver desaparecido da existência de todos os povos, então, precisamente, as perguntas: para quê? para onde? e depois?, começarão a assombrar-nos como fantasmas"... E aí está, "esse motor de aceleração que comprime séculos em segundos", escreve Rui Nunes. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamava Valéry naquele célebre texto sobre a “crise do espírito” no final da Primeira Guerra, e agora o que nos diz o escritor português é que a ruína se tornou o próprio material de construção deste tempo, adiantando que a ruína exprime hoje a intimidade das civilizações. De resto, à volta, por toda a parte, ouve-se um zumbido e vêem-se as luzes dos monitores ligados, sente-se essa fetidez constante "do silencioso arquivo dos computadores, essa vala comum da modernidade". Por estes dias são as nossas próprias consciências que já arrastam e fazem alastrar esse mesmo sinal doentio, essa condenação que trazemos misturada no hálito. "Os noticiários tornam-se tão poderosos que já não precisam de televisão nem de jornais. Existem na percepção das pessoas. Elas próprias inventam as notícias, suficientemente poderosas para parecerem genuínas. São os noticiários sem os media", escreve DeLillo. Mas se não podemos sentir um verdadeiro ânimo, podemos ter vergonha de termos também caído nisto, e assim vimos pedir muitíssimas desculpas, e então damo-nos conta do motivo porque fazemos isto, porque insistimos em pôr uma frase à frente da outra, ultrapassando o desgosto, buscando o que vem depois, e desde logo também porque, como vincava Georges Perec nas últimas linhas de um dos seus livros… “Escrever: tratar de reter algo meticulosamente, de conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas ao vazio que se escava continuamente, deixar nalgum lugar um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” Aqui está o motivo por que quando não se tem mais nada ao menos podemos virar-nos para os nossos fantasmas, que não nos deixam falar sozinhos.
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O homem não se reproduz numa grande gargalhada, e é pena. Daria outro sentido às coisas, e seria já por si uma filosofia de impulso quando as coisas não parecem ser capazes de rastejar mais baixo. Já se sabe que os chefes de família em nada acreditam, mas que grande fé colocam no seu cinismo. A situação da nossa fragmentada e precária civilização é cada vez mais grave, lê-se em toda a parte. E as luzes que ainda nos restam parecem cada vez mais íngremes. Todo este desgaste, estes milhões diariamente condenados à frustração, deve ser aqui o limbo. Mas se todos os desertos são falsos, este também o será. Fitamos o dorso dos livros que se arquejam, buscamos passagens, e nisto estamos próximos de tantos que se dedicaram a viciar a lógica, deturpar os estilos, misturar os séculos, suprimir as escolas. No fundo, e pelos fundos, nascem esses magos da quinquilharia, capazes de extrair alguma múmia de uma serapilheira. O pó é comum, as imagens é que se admiram da imensidão dos seus usos. Resta-nos a amizade que se tece de forma estreita com os que já não estão, com um Santos Fernando, com um Giorgio Manganelli, que nos deixava esta senha pessoal: "Amo a companhia, entre todas discretíssima, dos mortos." Aprendemos a trocar as posses pelas possessões. O som da nossa voz parece-se mais com uma cicatriz. "À medida que a civilização caminha para o seu zénite, ou para o seu zero absoluto, avançamos na técnica, renovamos as artes, modernizamos os hábitos e reajustamos os mobiliários, tendemos simultâneamente para o passado, enfeudados a um chiquismo, a uma presunção, recheando o lar progressivo de móveis carunchosos. Mais do que se faz com os vinhos, a divisa é envelhecer as peças. A pátina vence, a porcaria prevalece. Dão-se tiros com a arma caçadeira em escrivaninhas de embutidos. Pintam-se tábuas podres ao domingo, para que pareçam obras do tempo dos Descobrimentos. Tudo très ancien. É moda ter coisas velhas", anota Santos Fernando. faz parte desta natureza de náufragos temporais, coleccionadores diluvianos. Há muito que uns tantos, não vendo forma de dar um jeito a isto, foram conspirando no sentido mais limitado de se porem à margem, tornando-se especialistas da simulação, compendiadores de pequenos males, com a sua capacidade de empunharem a doença, tornaram-se os seus subtis artífices. Compendiam-nas, submetem-se aos efeitos, e deram-se conta de que era um dos talentos mais úteis, essas doenças que se pode aprimorar e que substituem vantajosamente outros géneros, desde a balada ao soneto, ou mesmo a epopeia, para não falar do poema sem pés nem cabeças que hoje se usa, entre outros registos igualmente caducos. E, assim, alguns levaram adiante as suas investigações, desde que alguém se perguntou: "Com a ajuda de que artifícios encontraríamos a força da ilusão para irmos à procura de outra vida, de uma vida nova?" Agora que excisaram o futuro de entre as ambições e os territórios batidos pelos literatos, estes mergulharam nesses cemitérios subterrâneos das espécies desaparecidas, e os melhores escrevem como os primeiros inventores da arte, na parede das cavernas, a palma das suas mãos como uma cintilante extensão de sóis. Assim, a linguagem recupera alguma da sua força de murmúrio, esse apelo doloroso de quem, à noite, por uma nesga qualquer se põe a medir distâncias entre as estrelas. A poesia estaria mais próxima desses gestos, uma vez que imita "uma realidade da qual o nosso mundo possui apenas a intuição" (Cocteau). Neste episódio, depois de tanta insistência, fomos enfim visitados pelo Vasco Santos, pelo menos por um deles, uma vez que o verdadeiro é um ser que paira como uma nuvem e se ligou há muito à descontinuidade essencial do tempo. Um ser esquivo, que habita o vai-vem, mas comparece sobretudo para ver essas ilhas que passam desligadas da corrente, como navios, mas muito mais vastos, sendo um devoto desses rigores ébrios, da delicada interdependência dos homens, quando o pasmo lhes desacelera os impulsos, e captam essas longas e sacras noites perfumadas que passam devagar, suaves como sonhos. Ao longo dos anos tem-se persignado em alimentar o contacto mútuo, astuto, absorvidamente crítico, animoso, alimentando um microcosmos da comunhão, sendo ele mesmo um sobrevivente dessas outras aspirações, um exemplo vivo e real desse alto objectivo que antes era próprio dos seres com alguma capacidade de êxtase.
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“Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta.// Ela arreganha dentes largos/ De longe. Na mata do cabelo/ Se abre toda, chupante/ Boca de mina amanteigada/ Quente. A puta quente.// É preciso crescer/ esta noite inteira sem parar (…)” Não é uma provocação, é Drummond de Andrade, o mais canalha dos anjos, o mais encarnado dessa hierarquia que se some pelo tecto da criação, o homem que envelheceu ainda de mochila às costas, indo sem querer para a escola, levando porrada no recreio, pedindo namoro à facção do outro lado, resumindo séculos de engate em bilhetinhos, que terminavam em escolha múltipla: “Sim”, “Não” ou “A gente logo vê”. Não estamos a querer simplificar, mas o fracasso amoroso implica ir batendo às portas, ir descendo, até ganhar coragem de atravessar a rua de baixo, onde nos cruzamos com essa “guardiã do limiar”, a prostituta que, segundo Benjamin, é essa figura sagrada e profana ao mesmo tempo, que guarda a passagem entre a cidade diurna e nocturna, entre o alto e o baixo. Hoje, só a vertigem ainda nos desperta. Por isso, dos anjos tudo o que nos resta é a queda, o desastre cumprido de forma ritual, que implica assumir uma escolha, muitas vezes a pior possível, até para não se entregar ao impasse como parece ser a regra entre os demais. Conhecem-se as delícias de não pensar, de não prever e acatar as obscuras transformações que devem fazer de nós homens novos, purificados, os nativos que invocam esse mundo novo, dissociado da realidade, fazendo por esquecer os cruzamentos da história e da cultura, emprestados a esse imenso coral eufórico, a uma sujeição constante da actividade individual aos imperativos da virtualidade. “O espaço social transformou-se num sistema mundial de ligações automáticas em que os indivíduos não podem experimentar a conjunção, mas apenas a ligação funcional. (…) A vida social prossegue, mais frenética do que nunca: o organismo vivo e consciente deixa-se invadir por funções matemáticas mortas e inconscientes”, vinca Franco ‘Bifo’ Berardi. Há hoje uma docilidade a um futuro que renunciamos a forjar e que nos limitamos a augurar, e mesmo se contrariados, colaboramos, dominados por desejos narcísicos e impulsos manipulados. Ninguém encontra saída, mas afundamo-nos e temos cada vez mais dificuldade em estabelecer uma fronteira entre o que pensamos ou sentimos e aquilo que não passa de uma resposta induzida a uma cadeia insuperável de estímulos, a um regime de programação dos circuitos neuronais. Não nos reconhecemos uns nos outros, mas falamos a mesma língua quando exprimimos este intenso mal-estar. “Este clima de asfixia que impregna os pulmões/ de uma angústia ofegante de peixe recém-pescado”, escreve Oliverio Girondo. “Este fedor aderente e errabundo,/ que intoxica a vida,/ e nos some em viscosos pesadelos de lodo./ Este miasma corrupto,/ que insufla em nossos poros/ apetites de polvo,/ desejos de um parasita abjecto,/ não surge,/ não surgiu/ destes aglomerados de sórdida hemoglobina,/ cal viva,/ soda cáustica,/ hidrogénio,/ chichi úrico/ que infectam os colchões,/ os tectos,/ as veredas,/ com suas almas cariadas,/ com seus gestos leprosos./ Este olor homicida,/ rasteiro,/ inelutável,/ brota de outras raízes,/ arranca de outras fontes./ Através de anos mortos,/ de crepúsculos com ranço,/ de sepulcros gasosos,/ de cursos subterrâneos de rios,/ foi-se aglutinando com os sucos pestíferos/ os detritos hediondos,/ as corrosivas vísceras,/ as esquírolas pútridas que consentiram o crime,/ a idiotice purulenta,/ a iniquidade sem sexo,/ o gangrenoso engano;/ até surgir o ar,/ expandir-se no vento/ e tornar-se corpóreo;/ para abrir as janelas/ penetrar nos quartos/ agarrar-nos pela nuca,/ empurrar-nos para o nojo,/ enquanto grita seu contágio,/ sua aversão,/ seu desprezo,/ por tudo o que aquieta a aspereza das horas,/ por tudo o que alivia a angústia dos dias.” Neste episódio vamos falar da polémica que opôs Madalena Sá Fernandes a João Pedro George, vamos tentar abordar os elementos de uma sanha acicatada em zonas onde se excitam os piores instintos, onde os enredos estão sempre previstos, e oferecem esse jogo em que, sem se apagar a luz, a condição dos números permite essa degradação de todo o discurso, uma exasperação dos elementos conflituantes, mas num grau tal de tensão que se suprime qualquer possibilidade de juízo crítico. “Outrora ainda se fingia respeitar a inteligência, a cultura, as atitudes cívicas e morais”, assinalava num texto já com um quarto de século José Miguel Silva. “Ninguém se atrevia a desdenhar publicamente a cultura ou a ideia de formação intelectual. Havia decerto nisso uma grande dose de hipocrisia. Mas a hipocrisia não é o mais baixo a que se pode descer: pelo menos revela ainda má consciência em relação a algo que no fundo (ainda que de forma meramente supersticiosa) se considera superior: os valores morais, a ideia de justiça, a honorabilidade da inteligência. Quando já nem hipocrisia existe, isso significa que só resta o cinismo. E o cinismo reside na constatação de que o sucesso mundano em nada depende da inteligência e da probidade, e no regozijo perante esse facto, que assume então visos de ‘libertador’.” Neste episódio convocámos a Maria Lis para uma tarefa bastante ingrata como ela nos levou a compreender ao longo desta discussão, explicando os motivos por que a possibilidade de transmitir verdadeiramente certas noções obrigaria a uma transformação tão profunda da condição daquele que escuta, que não teria apenas de o fazer com verdadeira disposição de se reconhecer nesse “outro” que é “a mulher”, mas admitir, ainda que momentaneamente, uma transfiguração profunda dos processos pelos quais nos comunicamos, deixando de lado a mera apreensão racional, para assumir uma verdadeira experiência dessa outra realidade, que, parecendo estar tão próxima, reside num pólo que em grande medida ainda nos é desconhecido.
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Este tipo masturba-se à sombra de uma árvore de que não sabe o nome, é espiado também desde um ninho qualquer por pássaros sem uma espécie que pudesse distinguir das demais, tem diante de si uns quantos cadáveres, rostos familiares dos filmes, das revistas, corpos que a sua fantasia se entretém a compor e decompor, enquanto procura um ângulo que o satisfaça. Em tempos escrevia umas coisas, foi publicado, tinha boas relações, e não demorou a ver-se como uma pequena vedeta no circuito, mas em breve já lhe parecia que arrastava o seu caixão atrás de si, pelas conversas que tinha, o tipo de preocupações e ansiedades que eram tão comuns, isto naquele país de fechaduras complicadas, com um trajecto que se perde por ali, enquanto tudo enferruja, entre os que tentavam garantir-se e construir a sua zona de privilégio. Cansou-se daquela correria, começando a preferir as páginas dos eruditos, tentando passar à clandestinidade, e, se possível, integrar o grupo dos escritores mais atacados pelos colegas, preparados para divisar, nas florestas dos textos, a sombra ominosa do deus a quem pretendiam barrar o caminho. Dedicou-se a períodos de ausência, cultivou os mistérios, mas já se sabe como é só por breve tempo que suporta o homem a plenitude divina, e voltou-lhe a apetecer que todos tivessem notícia dele. Acontece que, entretanto, se habituara a registar os devaneios, e por mais que se esforçasse não conseguia ele mesmo fazer sentido daquilo que se lhe impunha, acabando sempre as suas derivas ou divagações por se extinguirem demasiado cedo. Como se a escrita o recusasse. Virou-se para os versos, naturalmente. Passou a dormir no tal caixão. “Está-se bem no teu caixão de aço, poeta./ De que é que te escondes. Tens medo dos versos./ Não te preocupes. Ao menos não mentem./ Fazem o trabalho deles como a gente faz o nosso./ E talvez tivesses amor a mais por ti próprio/ E pelo teu trabalho. Eu cá trabalho por dinheiro./ O meu prazer é depois do trabalho, cerveja e mulheres./ Agora trata-se de esquecer o que representavas para eles/ Para cada um deles, poeta. A morte paga a pronto.” Andava cheio de vozes, não sabia onde começava ele ou uns versos de Heiner Müller como esses aí em cima. Dizia a quem estivesse disposto a aturá-lo que andava a semear fantasmas, fingia-se bêbado, meio louco, sempre num transe marado, vagabundo e sei lá que mais, pedia dinheiro para comprar palavras, tinha uma tabela, preços, e de tanto as medir começou a usá-las para fins maliciosos, andava por aí já podre de inimigos, aparecendo à porta duns e dumas, arranjando problemas, fazendo ameaças, deixava-lhes cartas que exibiam um grau de paciência demoníaca, recortando frases, às vezes palavras ou até letras das revistas, já se dizia um fabricante de trovões, em vez de livros queria submergir a cidade numa imensa tempestade… “Mas de mim eles vão dizer Ele/ Fez propostas Não as/ aceitámos. Porque é que havíamos de o fazer./ É isto que deve ficar escrito na minha sepultura e/ Que os pássaros lhe caguem em cima e/ Que as ervas cresçam no meu nome/ Escrito na pedra Por todos/ Quero ser esquecido um rastro na areia.” Mas antes disso, podia despedir-se, armar um estardalhaço como aquela cidade não supunha já que fosse possível de um literato, mesmo um proscrito. Havia de regressar aos jornais do inimigo, uma última vez, antes que fosse tão má ideia nomeá-lo como noticiar suicídios. “Para quem escrevemos/ Senão para os mortos omniscientes no pó”… A imortalidade começava então a parecer-lhe um castigo que não se deve desejar a ninguém. Passou a acreditar que os verdadeiros poetas fazem de tudo para ser esquecidos, para cercar de nojo mesmo os seus mais delirantemente belos tumultos juvenis, e pela aspereza, por confidências venenosas, compram os seus versos mais delicados de volta, garantindo que a sua divina rudeza os torna insuportáveis para a memória dos que só querem encher mais não sei quantas páginas com as suas próprias inanidades sonantes. “Porquê escrevê-lo, apenas porque as massas o querem ler?” É sempre música aquilo que mais se ouve nos períodos de acentuado declínio. “Quando já tudo foi dito, as vozes soam doces”, garante Müller. Mas e se ainda nada foi dito, e se há muito tempo ninguém diz nada, não se desencadeiam então esses períodos em que a coisa mais estranha que pode soar nesta terra seja uma voz humana? Não estamos esquecidos dos elementos que implantam dentro de nós a vertigem, antecipando na carne todos os elementos da queda. Os verdadeiros poetas são perseguidos, a sua atenção torna-os atreitos a depararem-se com acidentes em toda a parte, são esses anjos desditosos, caíram tantas vezes que quebraram todos os ossos dentro da cabeça, e só lhes é dado reconhecer em cada detalhe aquilo que se aproxima, o tal desfecho. Neste episódio Rui Nunes veio incitar-nos a abrirmos mão daquilo que já julgamos saber, veio desequilibrar-nos e à arrogância com que disputamos as ficções do mundo conhecido, para nos devolver à sua outra face, a do desconhecido. Veio lembrar-nos da força do desamparo, do desinteresse pelas tenebrosas sequências ou consequências de uma urdidura que nos precede e sufoca desde sempre. Ele diria apenas: “volto ao trabalho de escrever a deserção, embora me não doa como antigamente (…) lutar com as palavras, progredir/ pelo interior desta guerra até chegar/ à palavra única da perda, esmagá-la/ contra mim, obrigar-me a dizer/ o seu corpo dizimado./ O caos/ Os cacos”.
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Não deveria haver coisa mais suja do que isso de pôr-se a escrever sem um fim claro, ir acerbilhando as frases de modo a gerar um grau qualquer de irrazoabilidade, uma relação suspeita, cujos esforços se tornam um motivo de perturbação à volta. “Começo a escrever. E quando o faço nada de bom se passa já no meu íntimo”, anota Santos Fernando. Na verdade, é essa a inflexão decisiva de uma escrita, quando nos damos conta de que não vem orientada por nenhum princípio edificante, ela impõe-se e nada de bom dali se pode esperar. E tudo nela se torna inquietante, desde logo um certo estilo híbrido, como um estranho ser cuja pele apenas transmitisse reflexos subtilmente distorcidos, e a sua superfície fosse ao mesmo tempo uma espécie de estômago, emaranhando a envolvência numa digestão laborosíssima, e fazendo o seu percurso, despedaçando com um humor algo cáustico tudo aquilo com que se cruza. Passou demasiado tempo desde que uma predisposição artística denunciava uma gente que se entregava a uma errância selvagem, figuras um tanto dissolutas, cujos modos se tornam raros, os gestos um tanto indecorosos, produzindo espontaneamente um cenário de clandestinidade ao seu redor. “Considero que a arte reflecte a moral e que não se pode renová-la sem levar uma vida perigosa e dando azo à mendicância”, escreve Jean Cocteau. Nenhum verdadeiro artista parte para a obra com um desejo de atingir a clareza. Desejáveis são as trevas. E não é uma questão de ser difícil, de se mostrar intratável, mas é a compreensão de que aquilo que nos escapa é o que tem para nós verdadeira gravidade e apelo, pois sinaliza esses mundos abolidos e os firmamentos extintos a partir do momento em que a imaginação já não ousa provocar verdadeiros desastres. “Não se trata de olhar sem compreender e de gozar gratuitamente de um charme decorativo”, insiste Cocteau. “Trata-se de pagar caro e de compreender com um sentido especial: o sentido do maravilhoso.” É preciso considerar o elemento pavoroso de uma ponderação que realmente se mostra disposta a suspender os valores que tomamos como essenciais. A partir de um certo ponto todo o verdadeiro pensamento deve provocar calafrios a quem se esforce por acompanhá-lo. Existe também a utilidade desses crimes que premeditamos longamente mesmo sem fazermos realmente tenção de os levar a cabo, mas apenas para gozar do elemento sinistro, e confessar-se, criando um nível de intimidade e partilha inesperados ao exprimir um ânimo vingativo, admitindo a dimensão de pavor dos desejos que formulamos com aquele gozo de um ser em sentir-se a retorcer, os tais desejos impossíveis por reconhecermos neles um excesso de consequências. Mas, sendo a vida aquilo que é, as fantasias tendem a ir enegrecendo, a assumir um teor cada vez mais perverso. E talvez não falte muito para que a arte não se possa já distinguir de uma conduta criminosa. “Noutros tempos, cheguei, por vezes a interrogar-me por que motivo os santos queriam tanto infligir a si próprios tormentos corporais”, escreve Rilke… “só agora compreendo que esse gosto do sofrimento até ao martírio era uma manifestação da urgência, da impaciência de não mais voltarem a ser interrompidos, nem incomodados, inclusivamente pelo que lhes poderia acontecer de pior. Tenho dias em que não aguento ver pessoas, com medo de que rebente nelas uma dor capaz de lhes arrancar gritos, tão forte é a minha angústia de que o corpo, como frequentemente acontece, abuse da alma, que nos animais encontra o seu repouso, mas a segurança só nos anjos a pode encontrar.” Esta segunda parte já não combina com estes dias sobre os quais atiramos ingenuamente pronomes possessivos. Na verdade, parece que em muitos casos aquilo que é preciso é abusar das almas, castigar os corpos o suficiente para que a matéria volte a reunir-se em torno de algum eixo. Entrámos por um caminho que aponta sempre na mesma direcção, e vai ao sabor democrático do baratuncho, assim os próprios poetas são coagidos a darem explicações e a balizarem os seus projectos ainda antes de se lançarem nas investigações que, idealmente, deveriam virar-lhes a vida do avesso, trucidando cada uma das expectativas que traziam. “As pessoas exigem que se lhes explique a poesia”, anota Cocteau. “Não sabem que a poesia é um mundo fechado que recebe muito pouca gente, e que chega mesmo a não receber ninguém.” Anda tudo tão conveniente, mas depois estamos todos fartos, ou apenas entretidos, distraídos, e assim. Idealmente as obras deveriam ser elas mesmas os inimigos daqueles que se viram obrigados a empenhar tudo para as arrancar de entre as partes mais vulneráveis da matéria e de si mesmos. Ora, este episódio cedo se lançou na investigação do descalabro, e convidámos uma especialista, instigadora desses acessos desejantes, alguém a quem parece animar a irresolução de quem não se revê na sua própria condição, alimentando-se da suspeita de que há muita coisa por aqui que não bate certo. Patrícia Portela aliou-se a nós neste esforço de traduzir toda a urgência e crueldade nas piores injúrias de forma a, pelo menos, causarmos alguma comichão que leve a coçar-se este tempo de calmaria podre mesmo estando o abismo em saldos.
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"A poesia é onde tudo acontece”, escreveu Alejandra Pizarnik. E adiantou que dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. “Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.” Mas há muito que deixou de ser assim entre nós. Por cá a poesia é o lugar onde nada acontece, e são realmente muito poucos aqueles que declaradamente assumem a poesia como fala da insubmissão, e que através dela manifestam desprezo pelas formas do poder. Por essa razão, como já alguns fizeram questão de sublinhar, a poesia deve ser feita contra a poesia, e contra essa noção que hoje se vai tendo do poeta como personagem que se dá ares precisamente para esconder que nada tem a dizer, “e que por isso verseja, com vista a produzir um efeito, um prestígio que influa positivamente nas hierarquias do poder e do dinheiro” (Júlio Henriques). Começa a ser difícil perceber em que momento é que a poesia escapa a ser um desses discursos acomodatícios, alimentando o álibi cultural daqueles que gostam de ser vistos a patrocinar as artes e ver-se cercados dessas criações de estufa. Já a propósito das publicações colectivas que se têm generalizado nos nossos dias, desses almanaques ou antologias sempre a fim do regime celebratório, à boleia de comemorações e efemérides, Alfonso Berardinelli falava na importância de se impor algum critério de objectividade que rompesse com a tendência dos poetas de hoje para se auto-consolarem no seu pequeno gueto, onde nada nem ninguém os contradiz. “Os poetas criaram uma zona protegida para si próprios, contentam-se com pouco, esperam pouco de si próprios, são susceptíveis e vaidosos, mas não têm uma verdadeira ambição. Já não têm as grandes ambições que os poetas sempre tiveram – os quais podiam não alcançar grande repercussão, mas contavam com o valor e o poder dos seus versos. A força dos poetas sempre foi esta.” No ambiente desolador que por cá passa por espaço literário, há muito que se confunde o campo de criação literária com o da circulação dos livros, quando essa forma de proliferação apenas sinaliza como o meio editorial se tornou afim da agenda de consumo que nos vai sendo imposta, dissolvendo a perspectiva crítica nesse favor que promove um consenso ideológico e sem margem para os gestos de recusa e de confronto. À semelhança do que aconteceu com a poesia, e com tantas das categorias artísticas, os próprios movimentos de contestação social viram-se subsumidos às retóricas de reprodução de avatares sociais e identidades digitais, num processo que dá primazia às formas de autorrepresentação. Tudo é uma miragem, uma peça de teatro cujo cenário não tem centro, nem corpo ou geografia. Também o feminismo que assume mais visibilidade é cada vez mais uma forma de auto-indulgência, quase um reflexo de ordem narcisista, como nos diz Jessa Crispin. “Eu defino-me como feminista e por isso tudo o que faço é um acto feminista..." Trata-se de um argumento político de tal modo evidente e poderoso, que a melhor forma de o esvaziar passou por cooptá-lo como uma estética e uma forma de merchandising. No seu manifesto feminista – "Why I am not a feminist" –, Crispin vinca que a história do feminismo tem sido marcada por um “pequeno número de mulheres radicais, muitíssimo empenhadas, e que há custa de um enorme sacrifício fizeram avançar a posição das mulheres, normalmente através de actos e palavras chocantes”, sendo que a “maioria das mulheres, embora tenha beneficiado imensamente do desafio e do empenho dessas poucas, tratavam logo que possível de se dissociar delas”. Esta ensaísta norte-americana que recupera e honra as posições da segunda vaga feminista é implacável na denúncia do individualismo e do capitalismo, sistemas de valores que, segundo ela, distorceram totalmente os propósitos e o alcance do feminismo, encorajando as mulheres a pensar no movimento apenas na medida em que este conduz a ganhos individuais. “As últimas duas décadas dessa forma de feminismo enquanto lifestyle levou tantas mulheres a partirem do princípio que a coerência com o feminismo não significa abdicarem nem recusarem-se seja ao que for. Bastava vestirem o rótulo, e nem era justo que se sentissem pressionadas a renunciar ao casamento, à cultura popular misógina, às roupas de fábrica ou às carreiras corporativas para se alinharem com os princípios feministas – e o facto é que muitos dos nossos ‘intelectuais de proa’ feministas se têm dedicado a todas as formas de contorcionismo no sentido de demonstrar como, não só nenhuma destas coisas é anti-feminista, como, na verdade, fortalecem o movimento.” Sara Araújo, a nossa convidada neste episódio, encarna bem esse trabalho árduo e o empenho que é essencial para que seja possível voltar a colocar a tónica no desmantelamento das hierarquias e dos elementos de opressão social que sempre estiveram na mira da crítica feminista. Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra durante quase duas décadas, acabou por cortar com aquela instituição na mesma altura em que vinham a lume as alegações sobre o clima de predação sexual e intimidação ou assédio moral no seio desta. Hoje, é uma das figuras chave no mais significativo acto de insurreição contra as estruturas despóticas que persistem na academia, que, volvidos 50 anos do 25 de Abril, ainda é essa incubadora dos mecanismos de poder e repressão que alimentavam a nossa ditadura tão afeiçoada aos seus pergaminhos catedráticos.
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Uma boa redacção é um cruzamento entre um navio daqueles do século XVII e uma tremenda orquestra, um sítio que em si mesmo vai a caminho, e transporta um profundo tumulto, esperanças, fúrias, um convívio pouco vigiado, alentado por todo o género de substâncias, quimícas, imaginárias, o raio, é um sítio laborioso, grave, atarefado, às vezes absurdamente tenso, outros explodindo de ânimo, risos, e que está sempre a tremer no ar do dia seguinte. É uma catedral onde buscam refúgio os seres que não estão bem com a vida como ela é, e querem enganá-la, produzir-lhe uma ilusão menos mesquinha. Combinam-se ali todas as influências, planos doentios, os mais ingénuos activismos, tudo num romance agitado, e sempre convencidos de que de uma frase que se escreva ali pode gerar-se alguma convulsão, arrancar um gemido às fundações desta porra. De algum modo, nos jornais tenta-se abrir uma jazida a partir do inexistente, convocar outras relações de ordem. Às vezes até há quem abra um livro da Llansol, e leia alto para acicatar os demais: "Sempre a inexistência tem mais força?" E depois, algum outro assente e prossegue: "No fundo o que existe provou já a sua fraca intensidade. Depois da infância o universo só interessa aos distraídos. Pois bem: acolher o invisível como a única notícia insólita” (Gonçalo M. Tavares). Anda-se ali a trabalhar para que o esforço e o talento combinado daquelas paixões e ódios revezando-se possa dar origem a um órgão para sempre inacabado, como uma força de impulsão que relembre como o momento mais importante é esse em que se admite que o principal ainda não foi feito, que, no fundo, ainda está tudo por fazer. Para lá de uma certa superfície de mundanidade, o mais importante é mergulhar para além dessa censura dissimulada das expectativas, ter a audácia de decepcionar repetida e magnificamente aqueles que só esperam dos jornais que produzam o ruído de fundo que dá a sensação de que tudo segue normalmente. Como se lê numa das casas pardas, “o mau é cada um ao seu, quem não gosta do que há devia ser do toma lá, dá cá”. A propósito da morte de José António Saraiva, lançamo-nos nalgumas considerações sobre aquilo que tem restado por aí, com dificuldade em salvar-se dos interesses e da propaganda, esse vago panteão de figuras enterradas em vida, que resistiram como podiam, alguns virando-se para aquele quixotismo alucinado, outros servindo-se desse handicap de crepúsculo dos deuses nada wagneriano para se entregarem a uma barafustação umas vezes melancólica, outras raivosa, mas apropriada a um animal acossado e já moribundo. Algum do melhor jornalismo degenera num monólogo irado, mas, por estes dias, essas tripulações parecem ter debandado, espalharam-se, adoeceram, estão trancados alguns com os vícios que lhes restaram nalgum buraco, e os vizinhos poderão escutá-los no corredor: "nunca faltei à verdade, mas rais parta a vida que quanto mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele não falta aí gente a quem se demoramos o olhar logo lançam em tom de desabafo que isto tem que levar uma volta, ó se tem, mas uma volta?, isto precisa é de um naufrágio de todo o tamanho, para levar daqui a merda dos que nem se agacham para cagar..." O que restou desse ânimo, encontra-se ainda nalguns desses livros que pareciam nascer contagiados como sinfonias daquela convivência toda, livros que parecem estar para ali numa luta consigo próprios, a tentar segurar-se. E o que neles mais nos convence é como mordem a mão que se lhes chega, que abre aquilo ao meio para o olhar logo se ver assaltado por uma frase que, de mangas arregaçadas, num impulso medonho, está ali a digerir uma intriga dos diabos, e mesmo se o largamos, o livro põe-se a pulsar a um canto, e mal te agarra de novo continua louco e amotinado ao fim de tantas páginas, a ponto de o seu ritmo se te meter na corrente. Mas o tão frágeis, o tão desligados que andamos vem de nos assuntar a ideia não só dos jornais como esses livros feitos em comum, não só dessa actividade dos espíritos em que a todo o momento fica claro como os nomes cedem e o que importa são os turnos, como se lida com as vagas também num quadro de sucessão, como este reforça aquele, pega onde o outro deixou a coisa e adianta mais uns metros ou quilómetros. A ambição era essa, gestos em comum, alargados, assumindo maior alcance, outra repercussão, podendo sempre ser retomados, revistos, corridos e transformados. Mas há uma espécie de terror de uma cultura desabrida, e desse efeito de refracção e mutação imparável. "Poderíamos, enfim, ser mais os poetas nados e criados, se não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a mutação, mudança que valha", escreve Maria Velho da Costa. E neste episódio João Sedas Nunes, filho da escritora, ele mesmo um espírito bastante inquieto, que se tem dedicado à sociologia e assume o gosto por explorar temas tantas vezes ingratos, as feridas nas relações sociais, estendendo as interrogações sobre o trabalho e as questões de inserção, a juventude, o desporto, e o futebol em particular, veio para que discutíssemos algumas dificuldades e apreensões, os dilemas da senescência nos nossos dias, do desconjuntamento económico, mas também a nossa admiração a diferentes níveis pela autora de "Maina Mendes".
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Muitos parecem deslumbrados com a época e a sua tolerância, o seu enredo caprichoso, a sua ânsia de tudo deglutir, de acolher todos os deserdados, todos esses que vão sendo empurrados para o amontoado, formando a grande pilha, nessa construção que ganha altura apenas para que tudo fique confinado à sombra que projecta. A imensa variedade de que as comunidades se compunham, as periferias com as suas diferenças, tudo se vê invadido pelo centro, que produz uma lei da gravidade que tudo desfigura. Como assinalava Pasolini, "as estradas, a motorização, etc., uniram estreitamente a periferia ao centro, abolindo qualquer distância material". "Mas a revolução dos meios de informação foi ainda mais radical e decisiva. Por meio da televisão, o centro assimilou o país inteiro, que era historicamente tão diferenciado e rico em culturas originais." Isto significa que, hoje, todos aqueles que provêm de alguma região distante, de um tempo distante, de uma outra relação ou convicção, estão sujeitos a ser acusados de um desvio, um efeito de perturbação. Dentro dos elementos a partir dos quais o centro organiza a sua rede de influência e coação, qualquer diferença é vista como suspeita, e gera sobre o estranho algum tipo de caricatura ou preconceito. As variações culturais, de linguagem, os sotaques, os elementos que são específicos de zonas delimitadas, onde foi possível produzir algum devaneio, oscilações, metamorfoses difíceis de situar ou capturar, tudo isso vem sendo denunciado à medida que o centro os cobre na sua sombra, procurando dar lugar "a uma cultura homogénea, estática, onde a linguagem oral é, agora, semelhante à linguagem escrita - e ambas igualmente pobres, sem exuberância, sem margem para a improdutividade", nota João Oliveira Duarte. "Continua a haver 'cultura popular'. Mas observemos o que se passa hoje sob esse nome um pouco por toda a Europa, os programas de televisão, os concursos, o divertimento para ocupação das horas vazias: onde havia exuberância, mesmo convivendo com a miséria, com violência, há hoje uma igualdade monótona e uma lógica do pastiche." A cultura passou a funcionar como uma forma de arrogância, com as suas sínteses descaradas, procurando nivelar e suprimir todos os elementos que lhe resistam, que lhe ofereçam atrito. O consumo acelerado exige um mesmo regime de processamento, de tal modo que o farisaísmo triunfou em toda a linha, e aquilo que esta feição cultural pretende é gerar esse ser que se contenta com qualquer coisa, que não procura dores de cabeça, antes conciliando a practicidade da vida quotidiana com a incontestabilidade da religião do lucro, limitando-se a dar uma no cravo e outra na ferradura, e, no fim, submete-se. Como lembra Pasolini, a luta progressista pela democratização expressiva e pela liberação sexual foi brutalmente superada e tornada vã pela decisão do poder consumista de conceber uma vasta (e, ao mesmo tempo, falsa) tolerância". Contra o desespero e as formas de desacato, contra a desilusão que hoje se exprime de forma suicidária, os nossos democratas continuam a pregar a moderação, as velhas fantasias hipócritas, a paciência, a tolerância. Mas a cólera tem vindo a contagiar tudo, num esforço comum, ainda que tão desorientado, no sentido de despedaçar este tempo morto. Enquanto isso, vendem-nos um conformismo e um bem-estar que descura inteiramente a génese cultural do desejo: "a liberdade humana é consciência, imaginação, construção linguística na ausência de alicerces ontológicos", diz-nos 'Bifo' Berardi. "É nessa dimensão que se dá a aventura moderna: só em segunda instância tem que ver com liberdade política; em primeiro lugar, tem que ver com indeterminação ontológica, autonomia em relação ao Ser." Mas, hoje, os fascismos são antes de tudo esses programas aspiracionais, esse enredo que procura a dissolução dos elementos de comunhão, de coesão social, instituindo um quadro de competição pelo sucesso, e ligando a realização pessoal ao dramatismo insonso identitário, em que cada um se sujeita a existir num perpétuo casting, tentando provar a genuinidade entre a sua realidade e o personagem que gostaria de representar. Neste episódio, contámos com o ídolo do avesso, um bruxo que fez da música esse ouvido encostado ao chão do mundo como a um peito, a refazer a infinitude plena da imperfeição, do gozo sideral que se obtém por meio da errância. B Fachada gosta dos mundos possíveis, não abdica dos processos falíveis nem vive para as gerais abébias, mas vem praticando uma experimentação comprometida com este tempo e este lugar, e revelando uma consistência crítica e uma habilidade extraordinária para se libertar dessa sórdida tristeza dos que acham que está tudo feito, e só resta ir ensaiando ao espelho uns esgares e expressões de enfado.
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Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fracos pelos mais fortes, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que estas exercem sobre nós, de tal modo que sacrificámos a nossa linguagem a elas. Num excerto da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, pode ler-se isto: “Lembra-te amiúde do que diz o Eclesiastes: ‘o olho não se farta de ver nem o ouvido de ouvir’. Procura, pois, desprender o teu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os olhos que se entregam à sensualidade mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” Vivemos encerrados, manietados por fantasias cada vez mais espúrias, delirando à beira da inconsciência, e até de forma cada vez mais ignara, sem nem nos sujeitarmos à inspiração e aos desafios que os antigos colocavam tentando alcançar e preencher o último horizonte, essa “orla mítica do mundo”. Cada vez mais inábeis na hora de nos lançarmos naquela exploração de que só uma imaginação treinada para tarefas de batedora dos mais ermos e improváveis terrenos é capaz, ficámos sujeitos a essa forma de câmbio da realidade pelas imagens, incapazes de recuperar uma experiência desta que produza um verdadeiro abalo dos sentidos e da inteligência. Num dos seus ensaios, Wagner lembrava como “nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. (…) O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso.” Nos nossos dias, fomos abdicando da dificuldade e dos processos de enamoramento e sedução, desistindo desses aspectos de recriação a partir dos quais se funda uma identidade autónoma, sempre em relação com o outro, e traímos a busca do prazer por esse substituto mais certo que é a descarga de adrenalina. Formamo-nos como seres ansiosos, capturados por uma condição generalizada de anestesia na sequência de uma tensão contínua, e o remédio para todas as nossas crises passa por aumentar a dose desta realidade de substituição, acelerar o ritmo, intensificar os estímulos e o efeito de estimulação do sistema nervoso. Estamos sempre ligados, mas num presente que se arreda da vida, consumindo a própria ausência, sequências de imagens fugitivas, um mundo impossível de tocar ou saborear, e nos raros momentos em que nos afastamos, entramos numa espécie de ressaca que torna a realidade que não desapareceu nem foi devastada entretanto ainda mais desagradável para esses sentidos atrofiados pelos fluxos de neuro-estimulação. Uma verdadeira revolução hoje teria de começar por um corte geral dos sistemas de enervação, de modo a que a emoção de sentir um corpo próximo pudesse fazer-nos superar essas inibições que estão a gerar indivíduos cada vez mais isolados e indiferentes. Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante. A certa altura, as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim, da mesma forma como nos debruçamos tentando traduzir relevos antigos, também a carne pode beneficiar da mesma atenção minuciosa, fazendo de nós seres que empurram e se descobrem e transformam por meio de uma afeição delirante. Neste episódio, vamo-nos deter sobre as transformações que se têm operado ao nível da biopolítica e que têm constituído a mais severa ameaça que as democracias modernas alguma vez enfrentaram. Seguindo o diagnóstico da mutação antropológica que se tem operado a nível cognitivo, vamos procurar perceber como as imagens são as armas às quais temos vindo a sucumbir. Para nos guiar e expandir a perspectiva crítica sobre a degradação dos nossos contactos e percepções, Carlos Vidal juntou-se a nós. Artista, crítico e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem uma extensa obra teórica que se detêm sobre a falibilidade da visão e tudo aquilo que faz de nós vítimas tão voluntárias das “aparições” espectaculares.
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Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de um impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a ponta o céu da boca. Não há tédio como aquele que se sente perante um livro invariável, incapaz de deslocar sequer ligeiramente a nossa perspectiva. Ainda somos capazes de perdoar as noções disparatadas, aqueles humores absurdos, mas que um texto seja de tal modo insípido que não nos provoque outra sensação além de cansaço, isso, sim, nos parece imperdoável. Quando abrimos um livro, move-nos sem que o saibamos a imortalidade, e não menos fundamentalmente a insatisfação, essa busca de um sentido inesperado, capaz de mergulhar em aspectos raros da existência, trabalhando nalguma explicação engenhosa. O que menos nos apetece é sermos envolvidos numa toada mais ou menos arfante e indiferenciada, mas antes dar com um percurso que nunca faríamos por nós mesmos, precipitados por uma inteligência que nos faz mergulhar numa outra substância dos dias, subitamente intensificada, dando-nos acesso a elementos de ligação que, sem o sabermos, já existiam em nós próprios, mas não por uma ordem que nos permitisse exprimi-los. Lemos para nos distanciarmos de nós mesmos, para superarmos os vícios e as rotinas do nosso juízo, procurando aprofundar as grandes articulações do mundo. Não é bem a realidade que nos maça, mas esta habituação às nossas ideias, o que nos empurra para uma certa indiferença, cadências desgastantes. Estavas a meio disto, de nada, de ti próprio, quando alguém te ligou e quis saber como andas. Não havia nada que pudesses dizer. Às vezes há diálogos que se repetem uma e outra vez pelos séculos. Soluçaste: "O ócio é fatigante." E do outro lado, ouviste uma frase que em tempos copiaste para um caderno: "Isso acontece, como bem sabes, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros." Cada um deveria ser obrigado a sair de casa com duas ou três páginas de anotações e citações para infiltrar ao logo do dia nas conversas, mesmo que desse a sensação de estarmos a jogar à batalha naval, tentando afundar a frota uns dos outros. Se não for assim, nos dias que correm, não nos deparamos com desafios animadores nem imprevistos de espécie nenhuma. Esta falta de um sentido profundo contaminou tudo, corroeu os fundamentos, deixou o mundo da experiência exposto na sua fragilidade, deslassado, fragmentado. Não demorará muito para que metade da humanidade esteja rendida aos sistemas de inteligência artificial, e estes é que serão transplantados para esses corpos incapazes por si mesmos de sustentar uma conversa que cative, seduza ou faça estremecer seja quem for. Que competição poderemos oferecer a algoritmos afinados a cada interacção para estender ao infinito o loop de informações, sobretudo se as máquinas forem capazes de simular esses sinais de afeição que nós próprios já nem praticamos. Fala-se de uma praga de narcisistas, mas somos mais como seres que perderam o seu reflexo, que não mais se dedicaram a projecções e reinvenções de si mesmos. Parecemos contentes por ser exactamente como somos. Talvez não seja assim tão mau se as máquinas atravessarem esta carne, desde que possam restituir-nos essa dimensão fantasiosa dos reflexos que trocávamos, a trama de engates. Perseguidos até à extinção, nem já cupidos se avistam, e até as flores se tornaram uma forma de insulto, ou, quando em grande número, formando coroas, uma ameaça de morte. Alguns pesquisam e encomendam pacotes de sonhos no Google. Fode-se mais por recomendação dos cardiologistas, e para preservar velhas tradições, ou apenas para benefício das máquinas, uma vez que toda a perversão e os vícios voyeuristas ficaram do lado delas. A nós basta-nos a estimulação por impulsos eléctricos. Trocámos de lugar. Devoram a nossa literatura, os filmes, a música, esforçam os seus circuitos para produzirem ecos capazes de abalar os mortos. São elas que visitam os cemitérios, e choram pelos últimos que foram capazes de algum registo irrepetível. Já nós, não passamos de sequelas, e a tensão mortal continua a dissipar-se. Este episódio ainda é do tempo em que éramos estranhos para nós mesmos, em que tocávamos ao nosso próprio ombro, e repetíamos inseguramente os nossos próprios nomes. A Serena Cacchioli, tradutora para a gaveta, autora de um alfabeto de distâncias cosidas por sussurros, abdicou da noite de Dia de São Valentim para vir descoser a bainha da história que contamos uns aos outros sobre quem somos. Veio falar-nos de ter esquecido finalmente as razões porque trocou Itália pelo nosso país, talvez porque, a 90 dias de receber o cartão do cidadão luso, já não precise de um motivo, e seja tão portuguesa como qualquer um de nós, o que significa estar de algum modo resignada a viver à deriva, neste país que continua a ser só aquilo que o mar não quis.
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Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer esboço de lirismo e subjectividade, Maiakóvski defendeu-se com estas palavras: "Aqui se diz que no meu poema não se deve colher uma mensagem geral. Em primeiro lugar, li apenas trechos, mas já nesses trechos citados, há um único eixo importante: o viver quotidiano. Aquele viver em que nada muda, aquele viver que se manifesta hoje como o nosso pior inimigo e que faz de nós filisteus." Parecem ser cada vez mais aqueles que se entregam a uma relação fria, bastante cínica, com as noções, as ideias, as leituras que vão fazendo, a todo o momento servem-se de razões contra a acção, formulam sempre os seus conhecimentos de forma a conjugar-se com a rede de determinismos ou conformismos que vão erodindo o campo de possibilidades. Têm demasiada pressa em concluir que não há volta a dar, não há saída. O jornalista e ensaísta francês Vicent Cocquebert identifica uma pulsão difusa que se operou com a omnipresença dos meios digitais para uma forma de narcisismo à medida que, da cultura ao consumo, passando pelos lazeres e mesmo pelas relações sociais, nos transformámos em "grandes organizadores dos nossos mundinhos tecno-domésticos". "Estamos agora encolhidos dentro de nós mesmos e em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade", diz-nos ele. "É como se, além de termos integrado as lógicas capitalistas da escolha e da rentabilidade em diversos domínios das nossas existências (sentimental, profissional, política), tivéssemos agora adoptado a postura do 'consumidor-senhor' dos nossos (minúsculos) reinos, nos quais o outro, quando não corresponde inteiramente às nossas expectativas, se torna inevitavelmente um obstáculo." Cocquebert traça aqui um regime de exclusão, a emergência de uma cultura do casulo, a qual tende a fazer-nos ver o exterior como exageradamente hostil, em vez de criar uma ligação dinâmica entre o indivíduo e a sociedade. Cada vez mais o mundo precisa pedir-nos licença, ficando sujeito a um intervalo cada vez mais dilatado, a largos períodos de quarentena, sendo submetido a uma série de actos de inspecção antes que lhe seja admitida qualquer interjeição. Ora, isto é precisamente o contrário da atitude de disponibilidade dos exploradores, daqueles que se alimentam da carne do acaso, desse tipo de criadores que gostam de sujeitar a imaginação às grandes derivas, e se mostram aptos a levar em conta a quantidade fantaástica de sons e formas que a cada passo das nossas vidas podemos captar. Nesse sentido, os poetas são menos os inventores do que espíritos que se acendem pela possibilidade de combinar e recombinar elementos e detalhes, todos os restos, ir investigar rastos, enxames, zumbidos... O motivo porque nos sentimos a desmoronar, incapazes de ser coerentes com nós próprios, de ligar por um fio os nossos gestos, tudo isso que leva a que nos sintamos dominados por uma vontade que nos estranha, aí surge uma patologia própria deste tempo: a sensação dolorosa de que as coisas nos fogem entre as mãos, a sensação de esmagamento provocada pela velocidade, pelo ruído, pela violência, a sensação de ansiedade, pânico, caos mental. Franco "Bifo" Berardi assinala como tudo isto provoca em nós uma crise dolorosa, uma série de sintomas que apontam para essa necessidade de procurar uma ordem para o mundo, um incentivo para construir uma ponte sobre o abismo da entropia, uma ponte entre várias mentes singulares. "É através desta conjugação que o sentido do mundo se vê evocado e posto em prática: semiose partilhada, respiração em consonância." Neste episódio, o guião desfez-se-nos nas mãos, mas demorámo-nos sobre a fragilidade que se sente hoje pela falta de coerência do mundo, ou pelo menos do esforço comum de projecção de um sentido. Cátia Terrinca, que tem desenvolvido um percurso ligado ao teatro e à performance, reivindica para si a condição de intérprete, não o mero abandono a um texto dramatúrgico, mas a sua interrogação, e veio falar connosco e assinalar o efeito da repetição para denunciar o tempo, como a experiência nasce de um cerco que se faz valer menos do que julgamos saber do que dos elementos de resistência que caracterizam um longo processo de digestão. Aí há margem não apenas para a intuição de uma infinitude de possibilidades, mas também para essa deriva que convoca o acaso e desdobra cada oportunidade numa situação de jogo.
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Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve os elementos de discórdia ao seu redor, tem alguma possibilidade de se autonomizar face ao presente. Como alertava Heiner Müller, que quisemos arrastar na bagageira, as obras de arte tenderão a ser prisões e as obras-primas cúmplices do poder. Pelo contrário, bebendo a sua água feroz pelas mãos do quotidiano, os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”. Devemos cair nas coisas dos outros, viver a relação mais íntima, ser as pulgas insaciáveis da tradição e dos mortos, retomar-lhes os textos à semelhança deste inclemente montador, atacar os grandes reservatórios, alimentar a distância mais persuasiva, restaurar as propriedades perdidas, inventá-las. A propósito, eis uns versos de Novalis dedicados a um outro poeta que lhe permitiu uma visão de magnífica abertura: “Quando a chave de toda a criatura/ seja mais do que número e figura,/ e quando esses que beijam com os lábios,/ e os cantores, sejam mais que os sábios,/ e quando o mundo inteiro, intenso, vibre/ devolvido ao viver da vida livre,/ e quando luz e sombra, sempre unidas,/ celebrem núpcias íntimas, luzidas,/ quando em lendas e líricas canções/ escreverem a história das nações,/ então, a palavra misteriosa/ destruirá toda a essência mentirosa.” Hoje, e para efeitos de delimitação de zonas exclusivas, o próprio ar do tempo mal circula, vive-se segundo fórmulas de confinamento, e o espaço de comunicação representa cada vez mais uma unidade insonsa, toda uma estrutura putrescente cai sobre nós, e o sentido que este tempo busca resolve-se contra a memória, impregnando de mentiras e vícios a linguagem. A única promessa que se fazem os imbecis é que muito em breve já não haverá quem possa fazer a outro sentir o peso da vergonha, envergonhar-se seja do que for. Até nisso vamos perdendo o sentido do religioso, e mesmo aquela voluptuosidade que Novalis ligava em particular à religião cristã, notando que “o pecado é o maior atractivo do amor divino – quanto mais um homem se sente pecador, mais cristão é”. Mas em breve mesmo o sentido moral cairá inteiramente em desuso, esse sentido que ele nos diz ser contínuo ao poder criador absoluto, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita, do microcosmos, da divindade real em nós. Hoje, pelo contrário, só resta a hiena, esse animal alegórico da matemática que, de acordo com Müller, sabe não haver resto e cujo deus é o zero. Em breve, não restará nada, nada a não ser a própria gramática da disputa, daqueles que se fazem a guerra mesmo por ninharias, e já o vemos nos supostos criadores, esse medo persistente dos que esperam fazer valer os seus títulos de propriedade no reino do espírito. Não haverá mais nada senão a própria escassez, o sentido da falta a incitar-nos aos gestos mais rudes e degradantes, a uma convivência ritmada pela agressão, a razão apenas instruída para devorar tudo, submeter tudo, alimentar-se da carne do outro. Não restará nada, nenhum sonho dentro do sonho, nem um sonho nosso para os mortos. Nem haverá grande necessidade de nomes, a linguagem será ela mesma a ilustração de um esmagamento, contracções sucessivas, e nem haverá orações nem túmulos, apenas o gasto inútil de quem se desfaz entre gritos. Ver um bando de homens amatilhados será a pior das imagens de terror para aqueles que estão em desvantagem. Nenhum nome os defenderá, nenhuma súplica será atendida. Neste episódio, além da respiração assistida que nos foi dada por aqueles que estiveram connosco e de um modo ou de outro participaram na discussão, pudemos desenhar em redor do tão instigante e sagaz percurso crítico de Pedro Levi Bismarck uma relação com as transformações que se estão a operar a grande velocidade nos nossos dias, desde logo um apertar do cerco em termos do uso de uma linguagem corrosiva, que constrange o pensamento e pretende esgotar as condições de existência, levar a uma exasperação dos elementos de representação e identificação. Arquitecto, editor do jornal Punkto, Bismarck é, entre nós, um dos mais pujantes e interventivos actores na produção de um discurso cheio de balanço e um fulgor que articula uma série de saberes de forma a interrogar uma cultura e um horizonte devastados pela predação económica e pela financeirização de todos os aspectos da vida social. -
Que lindo cortejo de condenados este que nos é dado apreciar. Neste país todo ele em -inho, como já dizia o outro, também tínhamos de ter os nossos artistas, e as duas ou três agências de promoção, arranjos, prestígios e reputações forjadas do pé para a mão, montras, pódios, esse bando de alminhas condecoradas, sempre com toda a disponibilidade para ir, e depois todos esses aspirantes, como náufragos à espera da manhã, é verdadeiramente uma doçura, e mesmo um orgulho para todos nós. Onde quer que eles estejam, com os seus adereços de intimidade e de sonho, dá a sensação que podemos ir vê-los mesmo a meio das suas trajectórias estelares, de algum modo já nasceram no museu, no cinema, fazem tão bem de si mesmos, e os intelectuais nem se fala. Com aqueles ângulos rectos, aquela postura de embaixadores de nações inteiramente místicas, nunca atraiçoam o personagem, e dá a sensação de que poderiam entreter uma audiência até à morte. Apesar de tudo, há sempre uns que arranjam maneira de ficar desgostados, que se queixam que "a poesia cheira demasiado a poesia, a filosofia cheira demasiado a filosofia..., que uma e outra sofrem de uma redundância abominável (Baudrillard). Queixam-se da afectação do verbo, da afectação da profundidade", mas não percebem puto do grau de exigência com que estão comprometidos os nossos actores. Seria preciso educá-los. Felizmente, até para esses há esperança. O que não nos faltam são "anomalias", "oásis", "milagres", o nosso ecossistema cultural é uma colónia e um laboratório com espaço para as experiências mais arriscadas, um programa de simulação de utopias, revoluções a gosto, servindo-se dos pontos de intersecção entre várias disciplinas artísticas e do cruzamento de referências das mais diversas geografias e contextos para nos colocar diante de máquina de mundos. Tem-se detectado mesmo um efeito de contágio do talento, da inteligência e do ímpeto, e facilmente se pressente que estas visões, como um futuro mais ou menos próximo, fornece uma indemnização da vergonhosa miséria do presente. Por isso mesmo, em estado de delírio, os estudantes, hoje, acorrem à ZDB e outras das nossas instituições da consolação quando sentem necessidade de respirar o perfume desses prestígios ilusórios. É uma alegria sobretudo viver dos balanços do nosso jornalismo cultural, viver da vertigem daqueles filmes rebobinados, e que esteja lá o que estiver, parece sempre dinâmico, naquele ritmo celerado, e com uma fabulosa complacência perante todas as misérias. Os adolescentes portugueses estão nas tintas para o paraíso, eles querem é aparecer nas páginas do Ípsilon e dar largas à sua adorável propensão para consumir alienação beatamente. "Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas", notou o Debord. Mas a verdade é que, para nós, isto já se foi tornando difícil. Dada a vasta e desenvolvida infantilização dos públicos, e o generalizado grau de submissão a que os indivíduos aparentemente na posse das suas faculdades mentais e até 'na flor da idade', ninguém se perde, ninguém se aventura, todos se descosem e justificam precisamente devido ao inconveniente de assumir posições arriscadas. Mas confiemos no Evangelho hipster que sai à sexta com o Público, e que nos garante que podemos encontrar bem aqui uma série de soluções de investimento para a nossa vaga inquietação, sendo que afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio, o que importa pois claro é dar tudo de si e andar a "remendos e côdeas", mas não perder as sessões que nos oferece algum desses espaços "entre o tecido institucional e o experimental, potenciadores da produção artística local e nacional, ao mesmo tempo que estabelecem diálogos internacionais". Neste episódio juntou-se a nós João Eça, realizador de fitas malcriadas, amante da técnica de se lançar de pára-quedas em território inimigo e andar por ali a espevitar os ânimos e gerar desacatos, ladrão de pratos, remisturador de sons, empregado de mesa aqui e ali, consumidor médio de porrada, vencedor das últimas três edições do campeonato de devoradores de Natxos.
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Para 2025 não temos grandes planos, apenas a insistência, os gestos que exigem ser lidos na continuação de um tumulto, prosseguimos os esforços, os erros de que ainda somos capazes, com aquela liberdade de já tudo ter sido dito, estando tudo ainda por fazer. Sem nenhum compromisso com a inocência, usamos um relógio morto no pulso, e se o tempo se decompõe, como esse inodoro cadáver, o tique taque soa a uma risada. Só agora começámos a perceber o que é isso da História, como esta faz de nós os seus objectos e, no entanto, nunca nos redime. A sensação de culpa ainda é a glória a que aspiramos. A memória começa a funcionar muito tarde na vida, e apenas para ligar os vestígios de um crime tão repetido, por isso precisamos de uma coisa e do seu contrário para poder falar, sobretudo para escrever e nos movermos entre os diferentes papéis. Também nós nos ouvimos, e é mesmo esse movimento de estranheza aquilo que melhor se aproveita. Dizemos coisas que vão para além do que sabemos, e por isso mesmo nos é tão difícil sermos muito detalhados. É isso o que nos agrada, o fazer companhia a uma outra coisa, sentir como nós próprios invadimos as nossas vidas, aceitamos o risco de se ser e não ser uma coisa, estar do nosso lado e contra nós. Deve ser um risco isto, havendo a possibilidade sempre de nos denunciarmos, de requerermos a nossa condenação. Muitos hoje só conseguem ser solidários consigo mesmos, e isso faz deles os crápulas que se sabe. Mas parece-nos evidente que devemos ser capazes de fazer aquele gesto de renúncia que ensinou Kafka, ao lembrar que no confronto entre nós e o mundo, melhor será que sejamos nós a perecer e que o mundo ofereça a sua esperança a outros. Aquilo que se escreve pertence ao sentido que alguém dará ao texto no momento em que este se torne urgente, e apenas em função disso este terá algum futuro ou não terá nada. Um dos problemas da escrita nos nossos dias, do seu excesso, é o ser notório que é feita com um propósito qualquer, imediato, são coisas que redigem uns tipos sentados, sem oferecer margem ao acaso, a esse esparso ditado… Falta-nos aquele sentido corporal do teatro, uma poética cheia de ardor, que exija os seus corpos, actores que se esquecem de si mesmos e vão até ao limite e ao pavor das circunstâncias dramáticas, sem depois vir receber aplausos nem pedir desculpas ao público. Em vez desses que no final se mostram à boca de cena, acolhendo o louvor, seria necessária uma unidade de tal forma profunda com o sentido que o público tivesse de se defender dos actores, que caíriam sobre ele por ter vindo ali em busca de uma continuação do mesmo enredo e artifício que faz da vida esta coisa sem relação com nada. Abusou-se das convenções, e hoje toma-se as formas por isso mesmo, o hábito desolador do que se vai repetindo numa ênfase cada vez mais estéril. O espectáculo dissociou tudo, e o sentido já não impele a acção. Müller diz-nos às tantas estar absolutamente convencido de que o fim da literatura vem com esta resistência ao teatro, esse regime suspensivo em que se desfiam todas as hipóteses porque não se admite que a vida possa abandonar a sua falta de razão por essa urgência que compele os corpos. O nosso desânimo parte desta fractura, o facto de toda a criação se ter submetido aos ditames da produção, e desde os jornais aos projectos editoriais, abandonou-se todo o vigor, o próprio efeito de um gesto continuado, insistente, pondo-se as obras ao serviço das coisas como são em lugar de contestarem e desenvolverem uma perspectiva desejante. O importante nos escritores significativos era a forma como surgiam como intrusos gerando alguma perturbação. O seu debate com a forma residia nesse efeito de transtorno, e só assim podiam considerar-se poetas ou artistas, actores ou o quer que seja que não se viciou nem está rendido à mera repetição, às nauseantes representações que apenas servem para dilatar o espaço entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Para nos servirmos de alguns exemplos, Müller lembra que Artaud nunca partiu de uma separação entre o público e a cena, mas que tentou restituir ao teatro uma função vital, que, na generalidade, este há muito tempo atraiçoou. Não há nada mais amestrado e inconsequente do que este género de actor que admite ser transformado numa celebridade, para dar corda às ilusões de uma audiência que só quer ser reconfortada no seu imobilismo, enquanto alimenta esses afectos à distância. E Müller vinca como também Brecht entendia que a força de uma obra teatral não deve ser aferida pela dramaturgia, mas com a realidade a que se refere. As instâncias de mediação começam por só se referir à realidade através dessa reprodução de imagens e lugares comuns que degradam qualquer possibilidade de que se pense o mundo enquanto uma composição unitária, em que há causas e efeitos, em que vibra em tudo um nexo contínuo. As representações que se dizem realistas começam por opor a matéria ao espírito, e assim condicionam de partida a nossa relação com aquilo que está constantemente a ser transformado pela nossa acção. E não há conspiração mais degradante do que a da impotência, desde logo porque desloca todo os efeitos para a esfera de uma sórdida minoria que se elege a si mesma contra os interesses de todos os outros. Assim, no contexto actual, as democracias conseguiram o que nenhum regime totalitário conseguiu: legitimar as piores formas de exploração fazendo com que a miséria de uns constituísse o tecto das aspirações dos demais. Actualmente, só os mais imbecis não reconhecem como as sociedades industriais modernas têm como eixo da sua ideologia e acção política reprimir a fantasia, instrumentalizá-la a favor dos seus fins e, assim, vulgarizá-la até se reconduzir inteiramente aos aspectos mais imediatos e mais sórdidos da realidade. Em vez de projectos, os homens passam a ser meros agentes viciosos, vítimas dos seus caprichos e apetites. Por esta razão, não pode haver um princípio de organização política, nem muito menos uma acção revolucionária, que passe ao lado dessa necessidade de mobilizar a fantasia. Brecht formulou-o desta maneira: haveria que possibilitar ao espectador que este pudesse a todo o momento desembrulhar aquilo a que é exposto em imagens alternativas, em processos alternativos. Que quando este se viesse diante de uma representação, quando escutasse um diálogo desenrolando-se desta ou daquela maneira, o espectador pudesse reimaginá-lo ou mesmo invertê-lo de forma a que fosse antes o diálogo que ele julga ser mais urgente ou desejável. Neste sentido, Müller rejeita as obras como coisas acabadas e que se dirigem à posteridade ou ao mundo contemporâneo, notando que esse efeito foi abolido no mesmo sentido em que deveria ser a propriedade privada dos meios de produção. "Num mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso", diz-nos Guy Debord, e, se a verdade e a mentira se tornaram reversíveis, se todos os factos estão sujeitos a deturpação, nunca como hoje foi tão decisivo que o jornalismo se submetesse a um profundo exame, de forma a repensar o seu papel e influência, as suas estratégias, a sua relação com o público, a pensar novas formas de subjectividade, capazes de resistência e de crítica, mas não nos moldes do individualismo clássico, liquidado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio. Pois, "se o ‘indivíduo’ enquanto tal não é nenhuma substância eterna, mas sim uma forma histórica de subjectivação (hoje objectivamente destruída, mesmo que simultaneamente idolatrada pela ideologia do consumo e pela indústria cultural), isso, porém, não implica que devamos desistir da ideia de sujeitos capazes de resistência e liberdade", como vinca Jeanne Marie Gagnebin. Neste episódio e para levar mais longe estas indagações, convidámos Margarida David Cardoso, jornalista integrante do Fumaça, um projecto editorial marcado por uma relação comunitária, horizontal, e que representa bem esse espírito de inquietação e compromisso, aquele empenho dos que são capazes de dedicar-se quotidianamente ao esforço de promover as mudanças de perspectiva que trazem em si visões alternativas.
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É difícil saber como se atravessa o nada deste arco, essa linha invisível do ano novo. Não há uma porta, talvez só um buraco, de um lado e do outro: o mesmo. Olhamos em volta, e, nas ruas, por toda a parte, menos do que um fantasma, só uma bruma retardada. Desde há um tempo já não há começos, e, deste modo, apoiamo-nos em rituais desgastados, e em todas as nossas manifestações apenas se exprime um cansaço fundamental. “Há no ar como que um perfume de ‘adeuses’”, notava Steiner. “A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que em tão larga escala determinam a nossa consciência, indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado tarde. A mesa foi levantada. ‘Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores, vamos fechar.’” E, no entanto, o castigo maior talvez seja precisamente a forma como tudo persiste, se arrasta. Sobre estes ciclos que não assinalam qualquer ímpeto nem um vago ânimo de revitalização, os nossos ‘cronistas’ dirão alguma bacorada num tom vagamente sarcástico, reduzindo-se todo o seu arsenal retórico a essa faca romba, mas descontando esses que se especializaram em produzir discursos que dão tudo como natural, e não assumem perplexidade ou espanto, nem muito menos ainda exprimem qualquer repúdio violento ou furor seja pelo que for, podemos socorrer-nos daqueles exemplos cada vez mais distantes dos seres comprometidos com um verdadeiro quadro de regeneração, revoltando-se diante desses elementos cerimoniais que só funcionam como aspectos de uma auto-ilusão. Tendo chegado ao nosso convívio este ano, por meio de uma generosa e instigante antologia, José Emilio Pacheco mediu bem essa estéril fanfarra no poema “O Novo Ano”: “O novo ano não bate à porta, não cumprimenta ninguém, fita-nos com a arrogância de quem nos tem nas mãos. Troça dos nossos intentos de cativá-lo. Pulverizará as boas intenções. Tem gozo no seu poder, sabe-o efémero, conhece as desgraças que sem equidade distribuirá, como sempre./ Na sua jurisdição de vida e morte, o novo ano arrasará tudo, não deixando sequer uma flor seca para o sentimentalismo da lembrança. Atropela com soberba de vencedor a nossa frágil dignidade, nós que o inventámos e que para ele erguemos um altar.” Estas cerimónias, na verdade, são uma convocação, uma dança da chuva tentando vincar o tempo, num esforço para exorcizar os aspectos dolorosos, e resguardar aqueles elementos que seria decisivo para nós preservar. Nesta devoção aos signos da temporalidade, está presente esse anseio constante de se transformar, e que é particularmente agudo nos momentos em que nos domina a impotência, e as circunstâncias nos fazem sentir descartáveis, imemoráveis. Em períodos em que somos forçados a comer as nossas derrotas, em que se não fosse por elas não teríamos mais nada, quando parece que os dias já nascem sujeitos a um efeito de escassez, dissipação, fez-se-nos imperioso sobreviver a uma época que não nos promete outra coisa senão mais do mesmo. Se nos debruçamos sobre os tímidos reflexos que observamos lançando um olhar sobre o futuro, logo o nosso vocabulário parece gasto, demasiado breve, balbuciando palavras como “ausência”, “esquecimento”, “indiferença”, “distância”. “E nunca mais, nunca mais, nunca, nunca”, acrescenta Pacheco. Parece sempre um tanto ridículo o presente que nos carrega, e nos obriga a rir do nosso aspecto. “Quão jovens, quão infantis parecem todos.” E até a morte parece ter mudado, não produzindo grande efeito no modo como interrogamos e convivemos com os nossos mortos. Há a notícia, depois uns vagos clamores, e depois uma incerteza sobre onde se está, quantos somos… “Agora mata-nos a velhice./ Agora entretém-nos/ a doença/ com um tabuleiro de esperança./ Agora por um instante a loucura/ parece mais serena.// Muito descansados, alimentados, vamos/ caindo um a um.” Toda a cultura reverteu em estratégias para maquilhar as expressões de desânimo, tudo tem apenas uma consistência efémera, actuando como uma distracção, sendo que o vício em paliativos começa muito antes de escutarmos a pulsação desse coração negro que acaba por devorar o outro. Neste primeiro episódio de 2025, gravado umas horas antes, não quisemos perder demasiado tempo com esses souvenirs da nossa dissolução nem com os brinquedos cuja função é estender essa segunda e desgraçada infância. Preferimos vadiar e afinar os instrumentos para espectáculo nenhum, virados para a hipótese de um mundo que de si mesmo nasça, impelido por este “atordoamento múltiplo/ estranheza/ de estar aqui, de ser/ numa hora tão feroz/ que nem sequer tem data”. Continuamos a assumir a nossa fragilidade, a admitir que se perdeu o mundo e não sabemos “quando começa o tempo de começar de novo”. A par de Pacheco, Steiner frisa que “a origem é a excelência maior de todas as coisas, naturais e humanas”. Procurámos atravessar este buraco, sem nos deixarmos absorver por balanços ou saldos que apenas reafirmam a agenda comercial, e, para captar algo da presença muda da luz matutina deste mundo, tivemos uma vez mais connosco Nuno Ramos de Almeida, um homem-feito-de-calos, espinhos, esgares, que conhece demasiado bem esses ecos dos ‘tempos de encerramento dos jardins do Ocidente’, mas que nunca abdicou do valor da acção, e de se expor ao risco que envolve propor-se junto dos inadaptados, daqueles que recusam traçar um caminho no sentido da adaptação dócil a normas idiotas.
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Não seria mau se, em vez de João e Maria, na lista dos nomes mais populares dados aos recém-nascidos surgissem nos próximos anos Greta e Luigi, em honra a essas figuras capazes de nos despertar para o escândalo do nosso modo de vida. Antes que nos seja possível reconhecer a necessidade do regresso da vingança como parte activa e meio de restituição do “princípio de coesão íntima do mundo” (Goethe), devemos começar por reconhecer como fomos expropriados dos elementos mediais, como não somos hoje capazes de produzir nem ecos nem reflexos, ou de obter uma representação da nossa experiência, configurando as virtudes e os modelos de existência humana que nos parecem adequados a habitarmos a terra de forma digna. “Há uma razão para vivermos encarnados”, como assinala a poeta Jorie Graham. “Aquilo que identificamos como o entorpecimento da vida quotidiana talvez não seja mais do que a sensação de incapacidade de formarmos experiências a partir das vidas que levamos, uma vez que estas em grande medida contornam o uso da panóplia de sentidos a que chamamos corpo, viciados como estamos nos ecrãs e nos atalhos sensoriais, nessas simplificações excessivas e que são próprias da realidade virtual. Não há nenhuma ideia cuja veracidade possa ser aferida se não passar pelos sentidos. Referimo-nos amiúde àquilo que mais nos une numa experiência partilhada como o nosso “senso comum”. Este era ou foi o nosso detector de mentiras.” Hoje sentimo-nos a viver existências degradadas ou demasiado parciais porque passamos a vida a tentar filtrar presunções fraudulentas, simulacros que induzem em nós esse estado de confusão e compram a nossa passividade por meio de vantagens materiais. Neste contexto, a própria moral é uma falsificação, pelo que aquilo que se exige de nós são todos os actos possíveis e imaginários de traição, em que cada instante significa um instante fatal, uma contradição activa no sentido que lhe dá Sartre, e que institui o tempo do rapto, da passagem, desse movimento do que se recusa a criar uma imagem fixa da vida. “Trair deriva do termo latim Tradere, que significa entregar, fazer passar, que, por acréscimo, veio a designar: abandonar, denunciar, desertar. Uma deslocação que implica uma fractura na ordem de pertença, uma ruptura no tempo.” Quando tudo ao nosso redor contribui para a estigmatização de actos de rebeldia, até de autodefesa, cumpre-nos corporizar essa expressão monstruosa que manifesta um repúdio inequívoco pelos aparelhos repressivos cada vez mais omnipresentes, e desde logo por superar todos esses impedimentos feitos de inércia, tabus e conformismo, recuperando a dignidade e a memória das lutas passadas, ao mesmo tempo que criamos “as nossas próprias leituras e narrativas, independentes daquelas ditadas pelas instituições e pelos meios de comunicação” (Rolando D’Alessandro). A partir do momento em que constatamos que vivemos hoje subjugados a esse impiedoso estado de excepção regulado de acordo com as necessidades dos mercados, num processo de financeirização coerciva de todos os planos da existência, somos levados a reconhecer que as situações político-morais que enfrentamos foram inteiramente deslegitimadas. E, como nos diz Sloterdjik, chegado esse momento, o que se chama existente deve ser sujeito a uma profunda revisão e, eventualmente, demolição. “Assim sendo, haveria que traduzir algo diferentemente a fórmula militante de Sartre para o século XX, ‘on a raison de se révolter’: quem tem razão não é aquele que se revolta contra a ordem existente, mas o que se vinga dela.” “No que diz respeito às implicações dos estados de excepção vingadores, o nosso estudo deve começar pela questão de saber de que maneira se pode pensar a transformação da cólera agora em vingança aplicada”, adianta o filósofo alemão. Agora sim era preciso que cada um de nós se solidarizasse com Mangione no momento em este apertou o gatilho para sacudir deste mundo o CEO da UnitedHealthcare. “Os nossos carrascos criaram-nos maus costumes”, eis uma constatação desgostosa de Grachus Babeus de que se serve Simone de Beauvoir para reconhecer o elemento de degradação moral a que os franceses se viram conduzidos durante o período da ocupação nazi. “Também nós, em face dos traidores que eram seus cúmplices, vimos brotar nos nossos corações sentimentos venenosos, de que nunca tínhamos saboreado o gosto." No ensaio “Olho por olho”, ela frisa que a partir do momento em que um homem se aplica a degradar de forma deliberada outro, tratando-o como uma coisa, e fazendo-o para seu proveito, “faz rebentar na terra um escândalo que nada pode compensar; é o único pecado contra o homem, mas desde que se cometeu nenhuma indulgência é permitida e pertence a qualquer homem o direito de o punir”. E, noutro momento, acrescenta: “É necessário punir sem ódio, dizem-nos. Mas eu creio que é precisamente aí que reside o erro da justiça oficial. A morte é um acontecimento real e concreto e não a realização de um rito. (…) Renunciando à vingança, a sociedade renuncia a ligar por um liame concreto o crime ao castigo e este só aparece então como um tributo arbitrariamente imposto.” Neste episódio, Luhuna Carvalho abandonou o seu retiro na montanha para se juntar a nós num esforço de forma a reconhecermos como este velho mundo voltou a rasgar os seus caminhos para a cólera, devolvendo-nos um exemplo que denuncia a forma como continuamos a defender-nos do culto dos heróis à antiga, servindo-nos para esse fim do efeito esterilizador das aspas da cultura histórica.
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Àqueles a quem o Natal diz muito pouco ou mesmo nada, o avesso das expectativas, esse sentido que nasce de tanto se tocar o mundo de fora, de interpretar um elemento de desordem, um modo de alegria tão apropriada à realidade como uma traição, seria embaraçoso tentar falar dessa sensação absurda de paz de que gozámos alguns enquanto crianças, estando entregues à espera, a uma difusa ansiedade, enquanto numa sala ao lado os adultos, em grande número, falavam entre si, defendendo essa mística da possibilidade de se crescer com este mundo, e de isso significar uma expansão dos elementos de fantasia, quando a própria infância se confundia com um território defendido e em cujos limites, a imaginação se permitia todo o tipo de exageros. Mas não ficava tão longe assim do momento em que tantos mestres acabam por revelar-se meros vigaristas. Depois ainda há um outro lado, e uma outra realidade onde os adultos são eles mesmos seres roídos, e a quem agrada impor a sua experiência misturando em cada conhecimento que se transmite uma dose de crueldade. Esses não atardam aquela sabedoria que vem a degradar-nos, mas trabalham-na eles mesmos para os seus fins. Neste quadro em que uma criança se pode tornar a presa de um ser imensamente frágil e que sobre ela exerce a sua infecta potência, Tove Ditlevsen descreveu a infância dizendo-nos que esta é comprida e estreita como um caixão, e não se pode escapar dela sem ajuda. “Ninguém escapa à infância, que se cola a cada pessoa como um odor. Pode-se nota-la nas outras crianças – e cada infância tem o seu próprio cheiro. Não se conhece o próprio cheiro, e por vezes teme-se que seja pior do que os outros. Fala-se com uma rapariga cuja infância fede a cinzas e carvão e, de súbito, dá-se um passo atrás quando se sente o fedor da própria infância. Observa-se, à socapa, os adultos (…). À vista desarmada, não se nota que tenham tido, outrora, uma infância, e não há quem se atreva a perguntar-lhes como conseguiram ultrapassá-la sem que ela lhes marcasse o rosto com cicatrizes profundas. Assim, facilmente se suspeita de que se tenham servido de um atalho secreto e adoptado a sua forma adulta muitos anos antes de chegar o momento certo. Fizeram-no num dia em que estavam sozinhos em casa, quando a infância lhes oprimia o coração.” É quase certo que, se a muitos lhes fosse dada a possibilidade de regressarem, veriam já tudo de forma diferente, e mesmo que reconhecessem o esforço dos mais velhos para não se tornar aparente como a vida chega a parecer-se com uma cerimónia em que tudo parece desmoronar-se perpetuamente enquanto aqueles que dão por isso se empenham para que alguns possam gozar o intervalo dessa consciência. De algum modo, a muitos de nós já não escaparia a forma como os próprios pais viviam refugiados nessa capacidade de editar o mundo para os filhos. Vimos desse castigo suave, brando, benigno. Mas só fomos felizes enquanto alguma coisa nos era escondida. A verdade é que nenhum prazer neste mundo deixa de impor um custo, nada do que nos foi dado emergiu de forma espontânea, e de graça. Há um peso que fica e vai corroendo aquele que segurou os indícios de uma desolação que nos cerca desde a primeira hora. Não há aqui uma negatividade, mas o reconhecimento de que todo o abrigo e consolação teve um preço. Pode demorar uns bons anos, mas mais tarde ou mais cedo damo-nos conta de o ritmo da existência é o da perda. E para muitos pode mesmo ser difícil conciliar esse avanço que nos foi dado, essa margem da alegria que nos foi permitida por esses que preservaram para nós um território inexpugnável, para que o mundo não aplicasse sobre nós os seus métodos de extorsão. Esse precioso equívoco conferiu-nos essa facilidade de nos destacarmos da realidade, sermos bichos de outro mundo, produzindo essa orla que mais tarde nos parece que veio a ser apropriada para efeitos de publicidade. Os tons garridos que agora tomam conta dos anúncios, tudo isso devolve a sinceridade daqueles devaneios na sua forma mais destituída, podre. Como se todo aquele vagar, que fez de nós seres para quem o tédio chegava a ser a pior das ameaças, tudo esse programa que subsidiou em nós o espírito, viria depois a projectar-se como uma radiografia revelando o lado vazio, o motivo porque havia nos adultos sempre um silêncio, uma espécie de reserva, como se não nos pudessem dizer demasiado, como se a partir de certos limites houvesse um risco de a lógica animosa que nos nutria se virar contra si própria. Os mais hábeis em traçar essa fronteira, e defendê-la, reconhecem que teremos tempo para atingir o esqueleto cinzento e eterno que está por baixo. Para alguns, o resto dos dias poderá muitas vezes trazer a sensação de se estar tomado pela sufocação, enquanto, desde a infância, vamos escavando a constatação do nosso cadáver. Mas, assim mesmo, o Natal regressa muito mais tarde, nessa possibilidade de observarmos os adultos, à socapa. Já não os revisitaremos com aquele sentimento de promessa, mas os laços ainda se reforçam, nuns casos apenas a compreensão, mas, noutros, a clareza de que nos deram pontos de referência fora do mundo, de tal modo que continuamos pela vida fora, mesmo que só por hábito, a variar, a desejar desobrigarmo-nos, a persistir, mesmo que de forma discreta, nessa perpétua revolta contra a mesquinhez dos dias-de-depois. Continuamos a ouvi-los nessa outra divisão, e o que importa, sabemos agora, não foi o que se terão dito, mas esse clamor que se mantém vivo, com as cores, a composição dos cheiros e dos gestos, todos esses contornos que marcam uma alegria electiva e reordenadora. E, então, parece claro que pouco importa o que acontece, mas as sensações que alimentam essa possibilidade de fuga, essa desordem posterior, nasce ali. Pelo resto dos dias, alguns movem essa luta – a fundo perdido – contra o tal esqueleto cinzento que tantos se esforçam por confirmar. Trazem-nos ossos, e para cada um deles temos nós outras figuras, imagens e hipóteses que ruminámos e contemplámos, de tal modo que nos demos o tempo para reproduzi-las nalguma transfiguração satisfatória. Pode-se dizer que falsificámos o mundo, que pássamos de seres que gozavam de um certo privilégio para o assumir na forma de desacatos, rompendo com as convenções e tudo aquilo que garante a estabilidade social. Pode-se dizer que vimos tudo mal, e que transportamos esse exercício maníaco desde a infância, forçando o mundo ao exagero de uma galeria de gestos de força ou prazer que levariam a realidade ao absurdo. Mas depois é fácil deste lado devolver a pergunta: Mais absurdo do que isto? Talvez não possamos justificar inteiramente este mal-estar, esta radiância dolorosa, este nascer a partir de uma graça que nos foi conferida por aqueles que tiveram a decência de não nos contar a verdade. Essa miséria, se a transportamos no nosso íntimo, significa que ficaremos sempre do lado do mundo contra nós próprios. Talvez haja uma medida de delírio que se torna intolerável, e é sempre necessário impor-lhe limites. Mas não certamente a favor das coisas como elas, hoje, se nos apresentam. O que este tempo nos pede é algo dessa paixão capaz de revirar o espectáculo da existência, não para nos forçar a roer algum dos ossos da realidade, mas para dar cabo deste mero esquema de inversão, em que aqueles que não tiveram a infância senão como um recreio para a crueldade dos adultos, depois escapam desta apenas para descobrir que se tornaram ilhas cercadas de filhos da mãe por todos os lados. Neste episódio não propriamente especial, mas gravado de antemão e disponibilizado entre quem menos quererá ouvir falar do Natal, tivemos connosco a escritora Cristina Carvalho, filha de Natália Nunes e de Rómulo de Carvalho (António Gedeão), alguém para quem esta quadra nunca teve grande significado, eque viveu sempre noutra medida de projecção das faculdades de conhecimento, de invenção e de crítica, e que veio assim dar-nos algum balanço para esta missa em que demos cabo do galo para vos servirmos a cabidela do costume.
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