Afleveringen

  • Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de um impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a ponta o céu da boca. Não há tédio como aquele que se sente perante um livro invariável, incapaz de deslocar sequer ligeiramente a nossa perspectiva. Ainda somos capazes de perdoar as noções disparatadas, aqueles humores absurdos, mas que um texto seja de tal modo insípido que não nos provoque outra sensação além de cansaço, isso, sim, nos parece imperdoável. Quando abrimos um livro, move-nos sem que o saibamos a imortalidade, e não menos fundamentalmente a insatisfação, essa busca de um sentido inesperado, capaz de mergulhar em aspectos raros da existência, trabalhando nalguma explicação engenhosa. O que menos nos apetece é sermos envolvidos numa toada mais ou menos arfante e indiferenciada, mas antes dar com um percurso que nunca faríamos por nós mesmos, precipitados por uma inteligência que nos faz mergulhar numa outra substância dos dias, subitamente intensificada, dando-nos acesso a elementos de ligação que, sem o sabermos, já existiam em nós próprios, mas não por uma ordem que nos permitisse exprimi-los. Lemos para nos distanciarmos de nós mesmos, para superarmos os vícios e as rotinas do nosso juízo, procurando aprofundar as grandes articulações do mundo. Não é bem a realidade que nos maça, mas esta habituação às nossas ideias, o que nos empurra para uma certa indiferença, cadências desgastantes. Estavas a meio disto, de nada, de ti próprio, quando alguém te ligou e quis saber como andas. Não havia nada que pudesses dizer. Às vezes há diálogos que se repetem uma e outra vez pelos séculos. Soluçaste: "O ócio é fatigante." E do outro lado, ouviste uma frase que em tempos copiaste para um caderno: "Isso acontece, como bem sabes, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros." Cada um deveria ser obrigado a sair de casa com duas ou três páginas de anotações e citações para infiltrar ao logo do dia nas conversas, mesmo que desse a sensação de estarmos a jogar à batalha naval, tentando afundar a frota uns dos outros. Se não for assim, nos dias que correm, não nos deparamos com desafios animadores nem imprevistos de espécie nenhuma. Esta falta de um sentido profundo contaminou tudo, corroeu os fundamentos, deixou o mundo da experiência exposto na sua fragilidade, deslassado, fragmentado. Não demorará muito para que metade da humanidade esteja rendida aos sistemas de inteligência artificial, e estes é que serão transplantados para esses corpos incapazes por si mesmos de sustentar uma conversa que cative, seduza ou faça estremecer seja quem for. Que competição poderemos oferecer a algoritmos afinados a cada interacção para estender ao infinito o loop de informações, sobretudo se as máquinas forem capazes de simular esses sinais de afeição que nós próprios já nem praticamos. Fala-se de uma praga de narcisistas, mas somos mais como seres que perderam o seu reflexo, que não mais se dedicaram a projecções e reinvenções de si mesmos. Parecemos contentes por ser exactamente como somos. Talvez não seja assim tão mau se as máquinas atravessarem esta carne, desde que possam restituir-nos essa dimensão fantasiosa dos reflexos que trocávamos, a trama de engates. Perseguidos até à extinção, nem já cupidos se avistam, e até as flores se tornaram uma forma de insulto, ou, quando em grande número, formando coroas, uma ameaça de morte. Alguns pesquisam e encomendam pacotes de sonhos no Google. Fode-se mais por recomendação dos cardiologistas, e para preservar velhas tradições, ou apenas para benefício das máquinas, uma vez que toda a perversão e os vícios voyeuristas ficaram do lado delas. A nós basta-nos a estimulação por impulsos eléctricos. Trocámos de lugar. Devoram a nossa literatura, os filmes, a música, esforçam os seus circuitos para produzirem ecos capazes de abalar os mortos. São elas que visitam os cemitérios, e choram pelos últimos que foram capazes de algum registo irrepetível. Já nós, não passamos de sequelas, e a tensão mortal continua a dissipar-se. Este episódio ainda é do tempo em que éramos estranhos para nós mesmos, em que tocávamos ao nosso próprio ombro, e repetíamos inseguramente os nossos próprios nomes. A Serena Cacchioli, tradutora para a gaveta, autora de um alfabeto de distâncias cosidas por sussurros, abdicou da noite de Dia de São Valentim para vir descoser a bainha da história que contamos uns aos outros sobre quem somos. Veio falar-nos de ter esquecido finalmente as razões porque trocou Itália pelo nosso país, talvez porque, a 90 dias de receber o cartão do cidadão luso, já não precise de um motivo, e seja tão portuguesa como qualquer um de nós, o que significa estar de algum modo resignada a viver à deriva, neste país que continua a ser só aquilo que o mar não quis.

  • Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer esboço de lirismo e subjectividade, Maiakóvski defendeu-se com estas palavras: "Aqui se diz que no meu poema não se deve colher uma mensagem geral. Em primeiro lugar, li apenas trechos, mas já nesses trechos citados, há um único eixo importante: o viver quotidiano. Aquele viver em que nada muda, aquele viver que se manifesta hoje como o nosso pior inimigo e que faz de nós filisteus." Parecem ser cada vez mais aqueles que se entregam a uma relação fria, bastante cínica, com as noções, as ideias, as leituras que vão fazendo, a todo o momento servem-se de razões contra a acção, formulam sempre os seus conhecimentos de forma a conjugar-se com a rede de determinismos ou conformismos que vão erodindo o campo de possibilidades. Têm demasiada pressa em concluir que não há volta a dar, não há saída. O jornalista e ensaísta francês Vicent Cocquebert identifica uma pulsão difusa que se operou com a omnipresença dos meios digitais para uma forma de narcisismo à medida que, da cultura ao consumo, passando pelos lazeres e mesmo pelas relações sociais, nos transformámos em "grandes organizadores dos nossos mundinhos tecno-domésticos". "Estamos agora encolhidos dentro de nós mesmos e em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade", diz-nos ele. "É como se, além de termos integrado as lógicas capitalistas da escolha e da rentabilidade em diversos domínios das nossas existências (sentimental, profissional, política), tivéssemos agora adoptado a postura do 'consumidor-senhor' dos nossos (minúsculos) reinos, nos quais o outro, quando não corresponde inteiramente às nossas expectativas, se torna inevitavelmente um obstáculo." Cocquebert traça aqui um regime de exclusão, a emergência de uma cultura do casulo, a qual tende a fazer-nos ver o exterior como exageradamente hostil, em vez de criar uma ligação dinâmica entre o indivíduo e a sociedade. Cada vez mais o mundo precisa pedir-nos licença, ficando sujeito a um intervalo cada vez mais dilatado, a largos períodos de quarentena, sendo submetido a uma série de actos de inspecção antes que lhe seja admitida qualquer interjeição. Ora, isto é precisamente o contrário da atitude de disponibilidade dos exploradores, daqueles que se alimentam da carne do acaso, desse tipo de criadores que gostam de sujeitar a imaginação às grandes derivas, e se mostram aptos a levar em conta a quantidade fantaástica de sons e formas que a cada passo das nossas vidas podemos captar. Nesse sentido, os poetas são menos os inventores do que espíritos que se acendem pela possibilidade de combinar e recombinar elementos e detalhes, todos os restos, ir investigar rastos, enxames, zumbidos... O motivo porque nos sentimos a desmoronar, incapazes de ser coerentes com nós próprios, de ligar por um fio os nossos gestos, tudo isso que leva a que nos sintamos dominados por uma vontade que nos estranha, aí surge uma patologia própria deste tempo: a sensação dolorosa de que as coisas nos fogem entre as mãos, a sensação de esmagamento provocada pela velocidade, pelo ruído, pela violência, a sensação de ansiedade, pânico, caos mental. Franco "Bifo" Berardi assinala como tudo isto provoca em nós uma crise dolorosa, uma série de sintomas que apontam para essa necessidade de procurar uma ordem para o mundo, um incentivo para construir uma ponte sobre o abismo da entropia, uma ponte entre várias mentes singulares. "É através desta conjugação que o sentido do mundo se vê evocado e posto em prática: semiose partilhada, respiração em consonância." Neste episódio, o guião desfez-se-nos nas mãos, mas demorámo-nos sobre a fragilidade que se sente hoje pela falta de coerência do mundo, ou pelo menos do esforço comum de projecção de um sentido. Cátia Terrinca, que tem desenvolvido um percurso ligado ao teatro e à performance, reivindica para si a condição de intérprete, não o mero abandono a um texto dramatúrgico, mas a sua interrogação, e veio falar connosco e assinalar o efeito da repetição para denunciar o tempo, como a experiência nasce de um cerco que se faz valer menos do que julgamos saber do que dos elementos de resistência que caracterizam um longo processo de digestão. Aí há margem não apenas para a intuição de uma infinitude de possibilidades, mas também para essa deriva que convoca o acaso e desdobra cada oportunidade numa situação de jogo.

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  • Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve os elementos de discórdia ao seu redor, tem alguma possibilidade de se autonomizar face ao presente. Como alertava Heiner Müller, que quisemos arrastar na bagageira, as obras de arte tenderão a ser prisões e as obras-primas cúmplices do poder. Pelo contrário, bebendo a sua água feroz pelas mãos do quotidiano, os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”. Devemos cair nas coisas dos outros, viver a relação mais íntima, ser as pulgas insaciáveis da tradição e dos mortos, retomar-lhes os textos à semelhança deste inclemente montador, atacar os grandes reservatórios, alimentar a distância mais persuasiva, restaurar as propriedades perdidas, inventá-las. A propósito, eis uns versos de Novalis dedicados a um outro poeta que lhe permitiu uma visão de magnífica abertura: “Quando a chave de toda a criatura/ seja mais do que número e figura,/ e quando esses que beijam com os lábios,/ e os cantores, sejam mais que os sábios,/ e quando o mundo inteiro, intenso, vibre/ devolvido ao viver da vida livre,/ e quando luz e sombra, sempre unidas,/ celebrem núpcias íntimas, luzidas,/ quando em lendas e líricas canções/ escreverem a história das nações,/ então, a palavra misteriosa/ destruirá toda a essência mentirosa.” Hoje, e para efeitos de delimitação de zonas exclusivas, o próprio ar do tempo mal circula, vive-se segundo fórmulas de confinamento, e o espaço de comunicação representa cada vez mais uma unidade insonsa, toda uma estrutura putrescente cai sobre nós, e o sentido que este tempo busca resolve-se contra a memória, impregnando de mentiras e vícios a linguagem. A única promessa que se fazem os imbecis é que muito em breve já não haverá quem possa fazer a outro sentir o peso da vergonha, envergonhar-se seja do que for. Até nisso vamos perdendo o sentido do religioso, e mesmo aquela voluptuosidade que Novalis ligava em particular à religião cristã, notando que “o pecado é o maior atractivo do amor divino – quanto mais um homem se sente pecador, mais cristão é”. Mas em breve mesmo o sentido moral cairá inteiramente em desuso, esse sentido que ele nos diz ser contínuo ao poder criador absoluto, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita, do microcosmos, da divindade real em nós. Hoje, pelo contrário, só resta a hiena, esse animal alegórico da matemática que, de acordo com Müller, sabe não haver resto e cujo deus é o zero. Em breve, não restará nada, nada a não ser a própria gramática da disputa, daqueles que se fazem a guerra mesmo por ninharias, e já o vemos nos supostos criadores, esse medo persistente dos que esperam fazer valer os seus títulos de propriedade no reino do espírito. Não haverá mais nada senão a própria escassez, o sentido da falta a incitar-nos aos gestos mais rudes e degradantes, a uma convivência ritmada pela agressão, a razão apenas instruída para devorar tudo, submeter tudo, alimentar-se da carne do outro. Não restará nada, nenhum sonho dentro do sonho, nem um sonho nosso para os mortos. Nem haverá grande necessidade de nomes, a linguagem será ela mesma a ilustração de um esmagamento, contracções sucessivas, e nem haverá orações nem túmulos, apenas o gasto inútil de quem se desfaz entre gritos. Ver um bando de homens amatilhados será a pior das imagens de terror para aqueles que estão em desvantagem. Nenhum nome os defenderá, nenhuma súplica será atendida. Neste episódio, além da respiração assistida que nos foi dada por aqueles que estiveram connosco e de um modo ou de outro participaram na discussão, pudemos desenhar em redor do tão instigante e sagaz percurso crítico de Pedro Levi Bismarck uma relação com as transformações que se estão a operar a grande velocidade nos nossos dias, desde logo um apertar do cerco em termos do uso de uma linguagem corrosiva, que constrange o pensamento e pretende esgotar as condições de existência, levar a uma exasperação dos elementos de representação e identificação. Arquitecto, editor do jornal Punkto, Bismarck é, entre nós, um dos mais pujantes e interventivos actores na produção de um discurso cheio de balanço e um fulgor que articula uma série de saberes de forma a interrogar uma cultura e um horizonte devastados pela predação económica e pela financeirização de todos os aspectos da vida social.





  • Que lindo cortejo de condenados este que nos é dado apreciar. Neste país todo ele em -inho, como já dizia o outro, também tínhamos de ter os nossos artistas, e as duas ou três agências de promoção, arranjos, prestígios e reputações forjadas do pé para a mão, montras, pódios, esse bando de alminhas condecoradas, sempre com toda a disponibilidade para ir, e depois todos esses aspirantes, como náufragos à espera da manhã, é verdadeiramente uma doçura, e mesmo um orgulho para todos nós. Onde quer que eles estejam, com os seus adereços de intimidade e de sonho, dá a sensação que podemos ir vê-los mesmo a meio das suas trajectórias estelares, de algum modo já nasceram no museu, no cinema, fazem tão bem de si mesmos, e os intelectuais nem se fala. Com aqueles ângulos rectos, aquela postura de embaixadores de nações inteiramente místicas, nunca atraiçoam o personagem, e dá a sensação de que poderiam entreter uma audiência até à morte. Apesar de tudo, há sempre uns que arranjam maneira de ficar desgostados, que se queixam que "a poesia cheira demasiado a poesia, a filosofia cheira demasiado a filosofia..., que uma e outra sofrem de uma redundância abominável (Baudrillard). Queixam-se da afectação do verbo, da afectação da profundidade", mas não percebem puto do grau de exigência com que estão comprometidos os nossos actores. Seria preciso educá-los. Felizmente, até para esses há esperança. O que não nos faltam são "anomalias", "oásis", "milagres", o nosso ecossistema cultural é uma colónia e um laboratório com espaço para as experiências mais arriscadas, um programa de simulação de utopias, revoluções a gosto, servindo-se dos pontos de intersecção entre várias disciplinas artísticas e do cruzamento de referências das mais diversas geografias e contextos para nos colocar diante de máquina de mundos. Tem-se detectado mesmo um efeito de contágio do talento, da inteligência e do ímpeto, e facilmente se pressente que estas visões, como um futuro mais ou menos próximo, fornece uma indemnização da vergonhosa miséria do presente. Por isso mesmo, em estado de delírio, os estudantes, hoje, acorrem à ZDB e outras das nossas instituições da consolação quando sentem necessidade de respirar o perfume desses prestígios ilusórios. É uma alegria sobretudo viver dos balanços do nosso jornalismo cultural, viver da vertigem daqueles filmes rebobinados, e que esteja lá o que estiver, parece sempre dinâmico, naquele ritmo celerado, e com uma fabulosa complacência perante todas as misérias. Os adolescentes portugueses estão nas tintas para o paraíso, eles querem é aparecer nas páginas do Ípsilon e dar largas à sua adorável propensão para consumir alienação beatamente. "Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas", notou o Debord. Mas a verdade é que, para nós, isto já se foi tornando difícil. Dada a vasta e desenvolvida infantilização dos públicos, e o generalizado grau de submissão a que os indivíduos aparentemente na posse das suas faculdades mentais e até 'na flor da idade', ninguém se perde, ninguém se aventura, todos se descosem e justificam precisamente devido ao inconveniente de assumir posições arriscadas. Mas confiemos no Evangelho hipster que sai à sexta com o Público, e que nos garante que podemos encontrar bem aqui uma série de soluções de investimento para a nossa vaga inquietação, sendo que afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio, o que importa pois claro é dar tudo de si e andar a "remendos e côdeas", mas não perder as sessões que nos oferece algum desses espaços "entre o tecido institucional e o experimental, potenciadores da produção artística local e nacional, ao mesmo tempo que estabelecem diálogos internacionais". Neste episódio juntou-se a nós João Eça, realizador de fitas malcriadas, amante da técnica de se lançar de pára-quedas em território inimigo e andar por ali a espevitar os ânimos e gerar desacatos, ladrão de pratos, remisturador de sons, empregado de mesa aqui e ali, consumidor médio de porrada, vencedor das últimas três edições do campeonato de devoradores de Natxos.

  • Para 2025 não temos grandes planos, apenas a insistência, os gestos que exigem ser lidos na continuação de um tumulto, prosseguimos os esforços, os erros de que ainda somos capazes, com aquela liberdade de já tudo ter sido dito, estando tudo ainda por fazer. Sem nenhum compromisso com a inocência, usamos um relógio morto no pulso, e se o tempo se decompõe, como esse inodoro cadáver, o tique taque soa a uma risada. Só agora começámos a perceber o que é isso da História, como esta faz de nós os seus objectos e, no entanto, nunca nos redime. A sensação de culpa ainda é a glória a que aspiramos. A memória começa a funcionar muito tarde na vida, e apenas para ligar os vestígios de um crime tão repetido, por isso precisamos de uma coisa e do seu contrário para poder falar, sobretudo para escrever e nos movermos entre os diferentes papéis. Também nós nos ouvimos, e é mesmo esse movimento de estranheza aquilo que melhor se aproveita. Dizemos coisas que vão para além do que sabemos, e por isso mesmo nos é tão difícil sermos muito detalhados. É isso o que nos agrada, o fazer companhia a uma outra coisa, sentir como nós próprios invadimos as nossas vidas, aceitamos o risco de se ser e não ser uma coisa, estar do nosso lado e contra nós. Deve ser um risco isto, havendo a possibilidade sempre de nos denunciarmos, de requerermos a nossa condenação. Muitos hoje só conseguem ser solidários consigo mesmos, e isso faz deles os crápulas que se sabe. Mas parece-nos evidente que devemos ser capazes de fazer aquele gesto de renúncia que ensinou Kafka, ao lembrar que no confronto entre nós e o mundo, melhor será que sejamos nós a perecer e que o mundo ofereça a sua esperança a outros. Aquilo que se escreve pertence ao sentido que alguém dará ao texto no momento em que este se torne urgente, e apenas em função disso este terá algum futuro ou não terá nada. Um dos problemas da escrita nos nossos dias, do seu excesso, é o ser notório que é feita com um propósito qualquer, imediato, são coisas que redigem uns tipos sentados, sem oferecer margem ao acaso, a esse esparso ditado… Falta-nos aquele sentido corporal do teatro, uma poética cheia de ardor, que exija os seus corpos, actores que se esquecem de si mesmos e vão até ao limite e ao pavor das circunstâncias dramáticas, sem depois vir receber aplausos nem pedir desculpas ao público. Em vez desses que no final se mostram à boca de cena, acolhendo o louvor, seria necessária uma unidade de tal forma profunda com o sentido que o público tivesse de se defender dos actores, que caíriam sobre ele por ter vindo ali em busca de uma continuação do mesmo enredo e artifício que faz da vida esta coisa sem relação com nada. Abusou-se das convenções, e hoje toma-se as formas por isso mesmo, o hábito desolador do que se vai repetindo numa ênfase cada vez mais estéril. O espectáculo dissociou tudo, e o sentido já não impele a acção. Müller diz-nos às tantas estar absolutamente convencido de que o fim da literatura vem com esta resistência ao teatro, esse regime suspensivo em que se desfiam todas as hipóteses porque não se admite que a vida possa abandonar a sua falta de razão por essa urgência que compele os corpos. O nosso desânimo parte desta fractura, o facto de toda a criação se ter submetido aos ditames da produção, e desde os jornais aos projectos editoriais, abandonou-se todo o vigor, o próprio efeito de um gesto continuado, insistente, pondo-se as obras ao serviço das coisas como são em lugar de contestarem e desenvolverem uma perspectiva desejante. O importante nos escritores significativos era a forma como surgiam como intrusos gerando alguma perturbação. O seu debate com a forma residia nesse efeito de transtorno, e só assim podiam considerar-se poetas ou artistas, actores ou o quer que seja que não se viciou nem está rendido à mera repetição, às nauseantes representações que apenas servem para dilatar o espaço entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Para nos servirmos de alguns exemplos, Müller lembra que Artaud nunca partiu de uma separação entre o público e a cena, mas que tentou restituir ao teatro uma função vital, que, na generalidade, este há muito tempo atraiçoou. Não há nada mais amestrado e inconsequente do que este género de actor que admite ser transformado numa celebridade, para dar corda às ilusões de uma audiência que só quer ser reconfortada no seu imobilismo, enquanto alimenta esses afectos à distância. E Müller vinca como também Brecht entendia que a força de uma obra teatral não deve ser aferida pela dramaturgia, mas com a realidade a que se refere. As instâncias de mediação começam por só se referir à realidade através dessa reprodução de imagens e lugares comuns que degradam qualquer possibilidade de que se pense o mundo enquanto uma composição unitária, em que há causas e efeitos, em que vibra em tudo um nexo contínuo. As representações que se dizem realistas começam por opor a matéria ao espírito, e assim condicionam de partida a nossa relação com aquilo que está constantemente a ser transformado pela nossa acção. E não há conspiração mais degradante do que a da impotência, desde logo porque desloca todo os efeitos para a esfera de uma sórdida minoria que se elege a si mesma contra os interesses de todos os outros. Assim, no contexto actual, as democracias conseguiram o que nenhum regime totalitário conseguiu: legitimar as piores formas de exploração fazendo com que a miséria de uns constituísse o tecto das aspirações dos demais. Actualmente, só os mais imbecis não reconhecem como as sociedades industriais modernas têm como eixo da sua ideologia e acção política reprimir a fantasia, instrumentalizá-la a favor dos seus fins e, assim, vulgarizá-la até se reconduzir inteiramente aos aspectos mais imediatos e mais sórdidos da realidade. Em vez de projectos, os homens passam a ser meros agentes viciosos, vítimas dos seus caprichos e apetites. Por esta razão, não pode haver um princípio de organização política, nem muito menos uma acção revolucionária, que passe ao lado dessa necessidade de mobilizar a fantasia. Brecht formulou-o desta maneira: haveria que possibilitar ao espectador que este pudesse a todo o momento desembrulhar aquilo a que é exposto em imagens alternativas, em processos alternativos. Que quando este se viesse diante de uma representação, quando escutasse um diálogo desenrolando-se desta ou daquela maneira, o espectador pudesse reimaginá-lo ou mesmo invertê-lo de forma a que fosse antes o diálogo que ele julga ser mais urgente ou desejável. Neste sentido, Müller rejeita as obras como coisas acabadas e que se dirigem à posteridade ou ao mundo contemporâneo, notando que esse efeito foi abolido no mesmo sentido em que deveria ser a propriedade privada dos meios de produção. "Num mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso", diz-nos Guy Debord, e, se a verdade e a mentira se tornaram reversíveis, se todos os factos estão sujeitos a deturpação, nunca como hoje foi tão decisivo que o jornalismo se submetesse a um profundo exame, de forma a repensar o seu papel e influência, as suas estratégias, a sua relação com o público, a pensar novas formas de subjectividade, capazes de resistência e de crítica, mas não nos moldes do individualismo clássico, liquidado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio. Pois, "se o ‘indivíduo’ enquanto tal não é nenhuma substância eterna, mas sim uma forma histórica de subjectivação (hoje objectivamente destruída, mesmo que simultaneamente idolatrada pela ideologia do consumo e pela indústria cultural), isso, porém, não implica que devamos desistir da ideia de sujeitos capazes de resistência e liberdade", como vinca Jeanne Marie Gagnebin. Neste episódio e para levar mais longe estas indagações, convidámos Margarida David Cardoso, jornalista integrante do Fumaça, um projecto editorial marcado por uma relação comunitária, horizontal, e que representa bem esse espírito de inquietação e compromisso, aquele empenho dos que são capazes de dedicar-se quotidianamente ao esforço de promover as mudanças de perspectiva que trazem em si visões alternativas.

  • É difícil saber como se atravessa o nada deste arco, essa linha invisível do ano novo. Não há uma porta, talvez só um buraco, de um lado e do outro: o mesmo. Olhamos em volta, e, nas ruas, por toda a parte, menos do que um fantasma, só uma bruma retardada. Desde há um tempo já não há começos, e, deste modo, apoiamo-nos em rituais desgastados, e em todas as nossas manifestações apenas se exprime um cansaço fundamental. “Há no ar como que um perfume de ‘adeuses’”, notava Steiner. “A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que em tão larga escala determinam a nossa consciência, indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado tarde. A mesa foi levantada. ‘Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores, vamos fechar.’” E, no entanto, o castigo maior talvez seja precisamente a forma como tudo persiste, se arrasta. Sobre estes ciclos que não assinalam qualquer ímpeto nem um vago ânimo de revitalização, os nossos ‘cronistas’ dirão alguma bacorada num tom vagamente sarcástico, reduzindo-se todo o seu arsenal retórico a essa faca romba, mas descontando esses que se especializaram em produzir discursos que dão tudo como natural, e não assumem perplexidade ou espanto, nem muito menos ainda exprimem qualquer repúdio violento ou furor seja pelo que for, podemos socorrer-nos daqueles exemplos cada vez mais distantes dos seres comprometidos com um verdadeiro quadro de regeneração, revoltando-se diante desses elementos cerimoniais que só funcionam como aspectos de uma auto-ilusão. Tendo chegado ao nosso convívio este ano, por meio de uma generosa e instigante antologia, José Emilio Pacheco mediu bem essa estéril fanfarra no poema “O Novo Ano”: “O novo ano não bate à porta, não cumprimenta ninguém, fita-nos com a arrogância de quem nos tem nas mãos. Troça dos nossos intentos de cativá-lo. Pulverizará as boas intenções. Tem gozo no seu poder, sabe-o efémero, conhece as desgraças que sem equidade distribuirá, como sempre./ Na sua jurisdição de vida e morte, o novo ano arrasará tudo, não deixando sequer uma flor seca para o sentimentalismo da lembrança. Atropela com soberba de vencedor a nossa frágil dignidade, nós que o inventámos e que para ele erguemos um altar.” Estas cerimónias, na verdade, são uma convocação, uma dança da chuva tentando vincar o tempo, num esforço para exorcizar os aspectos dolorosos, e resguardar aqueles elementos que seria decisivo para nós preservar. Nesta devoção aos signos da temporalidade, está presente esse anseio constante de se transformar, e que é particularmente agudo nos momentos em que nos domina a impotência, e as circunstâncias nos fazem sentir descartáveis, imemoráveis. Em períodos em que somos forçados a comer as nossas derrotas, em que se não fosse por elas não teríamos mais nada, quando parece que os dias já nascem sujeitos a um efeito de escassez, dissipação, fez-se-nos imperioso sobreviver a uma época que não nos promete outra coisa senão mais do mesmo. Se nos debruçamos sobre os tímidos reflexos que observamos lançando um olhar sobre o futuro, logo o nosso vocabulário parece gasto, demasiado breve, balbuciando palavras como “ausência”, “esquecimento”, “indiferença”, “distância”. “E nunca mais, nunca mais, nunca, nunca”, acrescenta Pacheco. Parece sempre um tanto ridículo o presente que nos carrega, e nos obriga a rir do nosso aspecto. “Quão jovens, quão infantis parecem todos.” E até a morte parece ter mudado, não produzindo grande efeito no modo como interrogamos e convivemos com os nossos mortos. Há a notícia, depois uns vagos clamores, e depois uma incerteza sobre onde se está, quantos somos… “Agora mata-nos a velhice./ Agora entretém-nos/ a doença/ com um tabuleiro de esperança./ Agora por um instante a loucura/ parece mais serena.// Muito descansados, alimentados, vamos/ caindo um a um.” Toda a cultura reverteu em estratégias para maquilhar as expressões de desânimo, tudo tem apenas uma consistência efémera, actuando como uma distracção, sendo que o vício em paliativos começa muito antes de escutarmos a pulsação desse coração negro que acaba por devorar o outro. Neste primeiro episódio de 2025, gravado umas horas antes, não quisemos perder demasiado tempo com esses souvenirs da nossa dissolução nem com os brinquedos cuja função é estender essa segunda e desgraçada infância. Preferimos vadiar e afinar os instrumentos para espectáculo nenhum, virados para a hipótese de um mundo que de si mesmo nasça, impelido por este “atordoamento múltiplo/ estranheza/ de estar aqui, de ser/ numa hora tão feroz/ que nem sequer tem data”. Continuamos a assumir a nossa fragilidade, a admitir que se perdeu o mundo e não sabemos “quando começa o tempo de começar de novo”. A par de Pacheco, Steiner frisa que “a origem é a excelência maior de todas as coisas, naturais e humanas”. Procurámos atravessar este buraco, sem nos deixarmos absorver por balanços ou saldos que apenas reafirmam a agenda comercial, e, para captar algo da presença muda da luz matutina deste mundo, tivemos uma vez mais connosco Nuno Ramos de Almeida, um homem-feito-de-calos, espinhos, esgares, que conhece demasiado bem esses ecos dos ‘tempos de encerramento dos jardins do Ocidente’, mas que nunca abdicou do valor da acção, e de se expor ao risco que envolve propor-se junto dos inadaptados, daqueles que recusam traçar um caminho no sentido da adaptação dócil a normas idiotas.

  • Não seria mau se, em vez de João e Maria, na lista dos nomes mais populares dados aos recém-nascidos surgissem nos próximos anos Greta e Luigi, em honra a essas figuras capazes de nos despertar para o escândalo do nosso modo de vida. Antes que nos seja possível reconhecer a necessidade do regresso da vingança como parte activa e meio de restituição do “princípio de coesão íntima do mundo” (Goethe), devemos começar por reconhecer como fomos expropriados dos elementos mediais, como não somos hoje capazes de produzir nem ecos nem reflexos, ou de obter uma representação da nossa experiência, configurando as virtudes e os modelos de existência humana que nos parecem adequados a habitarmos a terra de forma digna. “Há uma razão para vivermos encarnados”, como assinala a poeta Jorie Graham. “Aquilo que identificamos como o entorpecimento da vida quotidiana talvez não seja mais do que a sensação de incapacidade de formarmos experiências a partir das vidas que levamos, uma vez que estas em grande medida contornam o uso da panóplia de sentidos a que chamamos corpo, viciados como estamos nos ecrãs e nos atalhos sensoriais, nessas simplificações excessivas e que são próprias da realidade virtual. Não há nenhuma ideia cuja veracidade possa ser aferida se não passar pelos sentidos. Referimo-nos amiúde àquilo que mais nos une numa experiência partilhada como o nosso “senso comum”. Este era ou foi o nosso detector de mentiras.” Hoje sentimo-nos a viver existências degradadas ou demasiado parciais porque passamos a vida a tentar filtrar presunções fraudulentas, simulacros que induzem em nós esse estado de confusão e compram a nossa passividade por meio de vantagens materiais. Neste contexto, a própria moral é uma falsificação, pelo que aquilo que se exige de nós são todos os actos possíveis e imaginários de traição, em que cada instante significa um instante fatal, uma contradição activa no sentido que lhe dá Sartre, e que institui o tempo do rapto, da passagem, desse movimento do que se recusa a criar uma imagem fixa da vida. “Trair deriva do termo latim Tradere, que significa entregar, fazer passar, que, por acréscimo, veio a designar: abandonar, denunciar, desertar. Uma deslocação que implica uma fractura na ordem de pertença, uma ruptura no tempo.” Quando tudo ao nosso redor contribui para a estigmatização de actos de rebeldia, até de autodefesa, cumpre-nos corporizar essa expressão monstruosa que manifesta um repúdio inequívoco pelos aparelhos repressivos cada vez mais omnipresentes, e desde logo por superar todos esses impedimentos feitos de inércia, tabus e conformismo, recuperando a dignidade e a memória das lutas passadas, ao mesmo tempo que criamos “as nossas próprias leituras e narrativas, independentes daquelas ditadas pelas instituições e pelos meios de comunicação” (Rolando D’Alessandro). A partir do momento em que constatamos que vivemos hoje subjugados a esse impiedoso estado de excepção regulado de acordo com as necessidades dos mercados, num processo de financeirização coerciva de todos os planos da existência, somos levados a reconhecer que as situações político-morais que enfrentamos foram inteiramente deslegitimadas. E, como nos diz Sloterdjik, chegado esse momento, o que se chama existente deve ser sujeito a uma profunda revisão e, eventualmente, demolição. “Assim sendo, haveria que traduzir algo diferentemente a fórmula militante de Sartre para o século XX, ‘on a raison de se révolter’: quem tem razão não é aquele que se revolta contra a ordem existente, mas o que se vinga dela.” “No que diz respeito às implicações dos estados de excepção vingadores, o nosso estudo deve começar pela questão de saber de que maneira se pode pensar a transformação da cólera agora em vingança aplicada”, adianta o filósofo alemão. Agora sim era preciso que cada um de nós se solidarizasse com Mangione no momento em este apertou o gatilho para sacudir deste mundo o CEO da UnitedHealthcare. “Os nossos carrascos criaram-nos maus costumes”, eis uma constatação desgostosa de Grachus Babeus de que se serve Simone de Beauvoir para reconhecer o elemento de degradação moral a que os franceses se viram conduzidos durante o período da ocupação nazi. “Também nós, em face dos traidores que eram seus cúmplices, vimos brotar nos nossos corações sentimentos venenosos, de que nunca tínhamos saboreado o gosto." No ensaio “Olho por olho”, ela frisa que a partir do momento em que um homem se aplica a degradar de forma deliberada outro, tratando-o como uma coisa, e fazendo-o para seu proveito, “faz rebentar na terra um escândalo que nada pode compensar; é o único pecado contra o homem, mas desde que se cometeu nenhuma indulgência é permitida e pertence a qualquer homem o direito de o punir”. E, noutro momento, acrescenta: “É necessário punir sem ódio, dizem-nos. Mas eu creio que é precisamente aí que reside o erro da justiça oficial. A morte é um acontecimento real e concreto e não a realização de um rito. (…) Renunciando à vingança, a sociedade renuncia a ligar por um liame concreto o crime ao castigo e este só aparece então como um tributo arbitrariamente imposto.” Neste episódio, Luhuna Carvalho abandonou o seu retiro na montanha para se juntar a nós num esforço de forma a reconhecermos como este velho mundo voltou a rasgar os seus caminhos para a cólera, devolvendo-nos um exemplo que denuncia a forma como continuamos a defender-nos do culto dos heróis à antiga, servindo-nos para esse fim do efeito esterilizador das aspas da cultura histórica.

  • Àqueles a quem o Natal diz muito pouco ou mesmo nada, o avesso das expectativas, esse sentido que nasce de tanto se tocar o mundo de fora, de interpretar um elemento de desordem, um modo de alegria tão apropriada à realidade como uma traição, seria embaraçoso tentar falar dessa sensação absurda de paz de que gozámos alguns enquanto crianças, estando entregues à espera, a uma difusa ansiedade, enquanto numa sala ao lado os adultos, em grande número, falavam entre si, defendendo essa mística da possibilidade de se crescer com este mundo, e de isso significar uma expansão dos elementos de fantasia, quando a própria infância se confundia com um território defendido e em cujos limites, a imaginação se permitia todo o tipo de exageros. Mas não ficava tão longe assim do momento em que tantos mestres acabam por revelar-se meros vigaristas. Depois ainda há um outro lado, e uma outra realidade onde os adultos são eles mesmos seres roídos, e a quem agrada impor a sua experiência misturando em cada conhecimento que se transmite uma dose de crueldade. Esses não atardam aquela sabedoria que vem a degradar-nos, mas trabalham-na eles mesmos para os seus fins. Neste quadro em que uma criança se pode tornar a presa de um ser imensamente frágil e que sobre ela exerce a sua infecta potência, Tove Ditlevsen descreveu a infância dizendo-nos que esta é comprida e estreita como um caixão, e não se pode escapar dela sem ajuda. “Ninguém escapa à infância, que se cola a cada pessoa como um odor. Pode-se nota-la nas outras crianças – e cada infância tem o seu próprio cheiro. Não se conhece o próprio cheiro, e por vezes teme-se que seja pior do que os outros. Fala-se com uma rapariga cuja infância fede a cinzas e carvão e, de súbito, dá-se um passo atrás quando se sente o fedor da própria infância. Observa-se, à socapa, os adultos (…). À vista desarmada, não se nota que tenham tido, outrora, uma infância, e não há quem se atreva a perguntar-lhes como conseguiram ultrapassá-la sem que ela lhes marcasse o rosto com cicatrizes profundas. Assim, facilmente se suspeita de que se tenham servido de um atalho secreto e adoptado a sua forma adulta muitos anos antes de chegar o momento certo. Fizeram-no num dia em que estavam sozinhos em casa, quando a infância lhes oprimia o coração.” É quase certo que, se a muitos lhes fosse dada a possibilidade de regressarem, veriam já tudo de forma diferente, e mesmo que reconhecessem o esforço dos mais velhos para não se tornar aparente como a vida chega a parecer-se com uma cerimónia em que tudo parece desmoronar-se perpetuamente enquanto aqueles que dão por isso se empenham para que alguns possam gozar o intervalo dessa consciência. De algum modo, a muitos de nós já não escaparia a forma como os próprios pais viviam refugiados nessa capacidade de editar o mundo para os filhos. Vimos desse castigo suave, brando, benigno. Mas só fomos felizes enquanto alguma coisa nos era escondida. A verdade é que nenhum prazer neste mundo deixa de impor um custo, nada do que nos foi dado emergiu de forma espontânea, e de graça. Há um peso que fica e vai corroendo aquele que segurou os indícios de uma desolação que nos cerca desde a primeira hora. Não há aqui uma negatividade, mas o reconhecimento de que todo o abrigo e consolação teve um preço. Pode demorar uns bons anos, mas mais tarde ou mais cedo damo-nos conta de o ritmo da existência é o da perda. E para muitos pode mesmo ser difícil conciliar esse avanço que nos foi dado, essa margem da alegria que nos foi permitida por esses que preservaram para nós um território inexpugnável, para que o mundo não aplicasse sobre nós os seus métodos de extorsão. Esse precioso equívoco conferiu-nos essa facilidade de nos destacarmos da realidade, sermos bichos de outro mundo, produzindo essa orla que mais tarde nos parece que veio a ser apropriada para efeitos de publicidade. Os tons garridos que agora tomam conta dos anúncios, tudo isso devolve a sinceridade daqueles devaneios na sua forma mais destituída, podre. Como se todo aquele vagar, que fez de nós seres para quem o tédio chegava a ser a pior das ameaças, tudo esse programa que subsidiou em nós o espírito, viria depois a projectar-se como uma radiografia revelando o lado vazio, o motivo porque havia nos adultos sempre um silêncio, uma espécie de reserva, como se não nos pudessem dizer demasiado, como se a partir de certos limites houvesse um risco de a lógica animosa que nos nutria se virar contra si própria. Os mais hábeis em traçar essa fronteira, e defendê-la, reconhecem que teremos tempo para atingir o esqueleto cinzento e eterno que está por baixo. Para alguns, o resto dos dias poderá muitas vezes trazer a sensação de se estar tomado pela sufocação, enquanto, desde a infância, vamos escavando a constatação do nosso cadáver. Mas, assim mesmo, o Natal regressa muito mais tarde, nessa possibilidade de observarmos os adultos, à socapa. Já não os revisitaremos com aquele sentimento de promessa, mas os laços ainda se reforçam, nuns casos apenas a compreensão, mas, noutros, a clareza de que nos deram pontos de referência fora do mundo, de tal modo que continuamos pela vida fora, mesmo que só por hábito, a variar, a desejar desobrigarmo-nos, a persistir, mesmo que de forma discreta, nessa perpétua revolta contra a mesquinhez dos dias-de-depois. Continuamos a ouvi-los nessa outra divisão, e o que importa, sabemos agora, não foi o que se terão dito, mas esse clamor que se mantém vivo, com as cores, a composição dos cheiros e dos gestos, todos esses contornos que marcam uma alegria electiva e reordenadora. E, então, parece claro que pouco importa o que acontece, mas as sensações que alimentam essa possibilidade de fuga, essa desordem posterior, nasce ali. Pelo resto dos dias, alguns movem essa luta – a fundo perdido – contra o tal esqueleto cinzento que tantos se esforçam por confirmar. Trazem-nos ossos, e para cada um deles temos nós outras figuras, imagens e hipóteses que ruminámos e contemplámos, de tal modo que nos demos o tempo para reproduzi-las nalguma transfiguração satisfatória. Pode-se dizer que falsificámos o mundo, que pássamos de seres que gozavam de um certo privilégio para o assumir na forma de desacatos, rompendo com as convenções e tudo aquilo que garante a estabilidade social. Pode-se dizer que vimos tudo mal, e que transportamos esse exercício maníaco desde a infância, forçando o mundo ao exagero de uma galeria de gestos de força ou prazer que levariam a realidade ao absurdo. Mas depois é fácil deste lado devolver a pergunta: Mais absurdo do que isto? Talvez não possamos justificar inteiramente este mal-estar, esta radiância dolorosa, este nascer a partir de uma graça que nos foi conferida por aqueles que tiveram a decência de não nos contar a verdade. Essa miséria, se a transportamos no nosso íntimo, significa que ficaremos sempre do lado do mundo contra nós próprios. Talvez haja uma medida de delírio que se torna intolerável, e é sempre necessário impor-lhe limites. Mas não certamente a favor das coisas como elas, hoje, se nos apresentam. O que este tempo nos pede é algo dessa paixão capaz de revirar o espectáculo da existência, não para nos forçar a roer algum dos ossos da realidade, mas para dar cabo deste mero esquema de inversão, em que aqueles que não tiveram a infância senão como um recreio para a crueldade dos adultos, depois escapam desta apenas para descobrir que se tornaram ilhas cercadas de filhos da mãe por todos os lados. Neste episódio não propriamente especial, mas gravado de antemão e disponibilizado entre quem menos quererá ouvir falar do Natal, tivemos connosco a escritora Cristina Carvalho, filha de Natália Nunes e de Rómulo de Carvalho (António Gedeão), alguém para quem esta quadra nunca teve grande significado, eque viveu sempre noutra medida de projecção das faculdades de conhecimento, de invenção e de crítica, e que veio assim dar-nos algum balanço para esta missa em que demos cabo do galo para vos servirmos a cabidela do costume.

  • A cultura hoje é essa espelunca onde o espírito entra e sai como e quando quer, ficando sempre incólume. É mais um dos tantos instrumentos de prostituição ao dispor. Mas cada vez fica mais difícil ir da medida à desmesura, ou do cálculo ao delírio. A coragem, naquele sentido de uma forte declinação do nosso nome, há muito que se perdeu. Ninguém exige novas formas de sentir, novas formas de pensar, e não podíamos estar mais longe de cumprir o projecto de Nietzsche, que passava por fazer da cultura (fosse só isto de ler, ou mesmo escrever, tocar, cantar, pintar, desenhar, viver) uma experiência radical. Já ninguém toma por porcos esses que abdicaram do esforço de dizer o essencial, sem hesitações, sem desculpas. Cada um para seu lado busca patentear algum drama insosso que lhe sirva de ingresso. Mais valia que aparecesse por aí uma geração sem esta ganância de delimitar fosse o que fosse, antes preferisse servir-se da escrita para misturar tudo, focando-se nesse labor contínuo de nos misturarmos mais e mais, criando um caos pela primeira vez sem medo, como propôs alguém. Edmond Jabès admite que qualquer palavra dita em voz alta se mostra subversiva em relação àquelas que são silenciadas. A nossa época pouco mais tem inventado além de ruídos, sendo que só na gestão dos seus silêncios se mostra verdadeiramente estratégica. Em vez de uma recusa, apenas cautelosas retiradas. Incapaz de fazer verdadeiras escolhas, limita-se a resignar-se face ao estado de coisas, tentando tirar dali algum proveito. è um tempo de algemas, em que a toda a hora nos cruzamos com seres que morreram prematuramente. Tudo são mostradores, folhas de calendários, ampulhetas, medidores de toda a espécie. O relógio é quem dá aulas de música e ritma o sangue. A ter uma especialidade, aquilo que este tempo sabe como fazer melhor que qualquer outro é criar ausências, como notou Ailton Krenak, alimenta as ilusões apenas para desgastar e mastigar cada um, para depois vir pregar o fim do mundo. Mesmo entre os que insistem em falar de poesia, há sempre aquele esforço de degradar o elemento de paixão que esta comporta. Pronunciam-se e escrevem sobre poesia como se esta fosse uma tarefa, vinca Borges. "Todas as vezes que mergulhei em livros de estética tive a sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas." Se em tempos os poetas lembravam que deve esperar-se de tudo por parte do futuro, hoje, há um género particularmente sinistro de tipos que, em vez de repudiar esses entusiasmos, se dedica a escrever versos, numa espécie de excreção que, de tanto se publicitar como poesia, dá uma péssima ideia da coisa. Também uma certa ideia de juventude que se empenhava em realizar uma redenção da cultura moderna, e tinha uma aspiração anarquista e romântica, se vê por estes dias alvo de constantes campanhas de desmoralização e de bloqueio por parte dessa mesma categoria de usurpadores. Nestas figuras ilustradas, tudo é adiposidade, que lhes dá aquela convicção daqueles que se limitam a prever o pior. Ora, nada é mais fácil, como assinala Canetti, pois quanto mais terrível for a previsão, tanto mais será verdadeira. Mas admirável seria prever algo positivo, uma vez que só isso é que se mostra improvável. Nada pior do que dar por si em minoria face a este tipo de canalhas. A partir de um certo ponto, nem são realistas nem sequer pessimistas, tendo começado a apostar no pior resultado com uma convicção tal que o seu orgulho passa a depender disso. Rapidamente se colocam ao serviço desses cenários paranóicos, e tudo fazem no sentido de impossibilitar a alternativa. Imaginam-se dotados de uma frieza que lhes permite desmascarar todos esses subversores que ameaçam levar mais fundo a infecção delirante, e, no entanto, eles é que impõem um final para o qual não há saída. Querem extirpar e perseguir até ao último cada um dos mitos românticos de outros tempos, esta gente que morreu velha sem alguma vez ter beijado nos lábios qualquer reflexo da sua juventude, e, assim, servem-nos os velhos trastes do costume, como para justificar o seu reinado de múmias. Depois de uma certa idade, para eles ler Rimbaud é como saltar um muro ao fim-de-semana para cheirar linhas de coca nos lavabos do nosso antigo liceu. Já Artaud é simplesmente uma tremenda falta de educação, como quem coça a alma com a mesma mão com que pouco antes coçara o rabo. Nem se vê como possa a literatura ser mais que uma justificação airosa para passar a vida sentado, e só um louco para colocar em cima do escritor, do poeta, algum tipo de dever. Pois Artaud garantia que não lhe cabe ir encerrar-se cobardemente num texto, num livro, numa revista de onde nunca mais sairá, mas, pelo contrário, deve sair, andar cá fora, para agitar, para atacar o espírito público... Mas os nossos intelectuais que só saem de casa para ir ao restaurante ou aos festivais, nem estão bem a ver o que possa querer dizer isso de "cá fora". Neste episódio, quisemos confrontar os modos dessa ideologia reactiva e atávica que tem dominado os processos culturais, e para este exercício contámos com o navio fantasma do nosso Oh-captain-my-captain, António Guerreiro, durante décadas crítico de plantão nas urgências literárias, e uma referência de todos os que saíram à rua empunhando uma caneta e desejosos de realizar cirurgias estéticas com os pacientes deitados em cima das páginas de jornais, e hoje controlador áereo numa torre com vista para as zonas de baixa pressão, onde vai traçando diagnósticos selvagens sem perder de vista as patologias principais da época.

  • Mais tarde, talvez façamos outra leitura do que significaram estes ensaios, como se em nós buscássemos o inimaginável, uma hipótese de romper com a cadência que nos leva a sentir que os dias se sucedem no sentido de uma constante subtracção. Talvez um dia as derivas que acumulámos possam permitir outra leitura, como um esforço que fizemos para nos mantermos num estado de perfeita disponibilidade de forma a que um tempo que sufocava entre impossibilidades por fim se oferecesse margem para romper com esta música desgastante que nos cerca e nos domina até ao enjoo. Nem há quem nos belisque, e é tão raro ouvir articulada com uma respiração nervosa e vibrante alguma conjugação de palavras que seja capaz de nos perturbar ou sacudir. Muitas vezes esbarramos com nós próprios, cumprimentamo-nos com menos que um aceno, um olhar que nos poupa àquelas palavras que, de tão circunstanciais, quase dão cabo de nós, e parece que estamos de volta a algum desses convívios cada vez mais desnecessários e onde temos dificuldade em saber quantos somos, e porquê este infeliz número, de tal modo que receamos estar a subdividirmo-nos... Não seremos meras réplicas, sequelas num enredo sem saída?, e parece-nos que cada tipo aqui presente, chegando a sua vez, tem o cuidado de dizer apenas o que for mais previsível, de fazer unicamente os mais breves comentários banais e de aparentar ter aceitado aquele convite formal e passado porventura meio dia em viagem para vir dizer ou ouvir tão-só o que não seja de todo consequente. Nem sei se não li já isto algures. O Breton diz que, em matéria de revolta, nenhum de nós deveria precisar de antepassados. Mas este é o ponto que parece mais difícil, antes mesmo de as coisas sucederem, de os acontecimentos se precipitarem, quando ainda parecia que estava ao nosso alcance desencadear alguma ruptura decisiva. Alguns, mais tarde, irão fantasiar-se nos seus relatos ao ponto de dizer que, por estes dias, viviam já como se retirados do mundo. Em breve irá emergir toda uma literatura de auto-exoneração, mas ser-nos-á difícil acompanhar essas inversões, a dizermos alguma coisa a seu respeito, se nos parecia que o objectivo de cada um deles foi nada dizer ou fazer que seja digno de nota. "A vida de algumas pessoas pode ser tão sucintamente resumida que não passa de uma porta que bate ou de alguém que tosse numa rua escura a meio da noite", notava Bradbury. "Olha-se pela janela, a rua está vazia. Quem quer que tenha tossido já desapareceu." A consciência parece ter-se tornado mais um dos aspectos do negócio. Fomos perdendo o chão, nós para quem essa foi a nossa primeira leitura. Foi com esse olhar perdido que aprendemos as primeiras letras. Era uma espécie de deficiência que nos defendia da coisa seguinte. Íamos, mas sempre como por acaso, como se por distracção ou empurrados. Talvez venha a ser possível fazer uma história dos diferentes caminhos que levam à literatura, desde logo uma história que passe bem longe do mercado. Uma narrativa sobre gente que se despenhou ou precisou desesperadamente virar-se para outras épocas, outros lugares. Mas uns anos mais tarde, quando viemos à superfície, éramos nós os grandes iletrados, não percebíamos patavina da realidade em que estávamos metidos. As filas continuam a avançar, continuam a não ter fim. Caminhamos na sonolência de mundos contrários, como diria o outro. Cada vez teríamos mais dificuldade em reconhecermo-nos mesmo se esbarrássemos contra nós próprios num destes ajuntamentos. Vamos sendo corpos sem eco, isto numa sociedade em que, há mínima perturbação, se é alvo de um processo, disciplinar ou não, e muitas vezes o pior é não ser clara a natureza. Até podem obrigar-nos a aguardar aqui ou ali enquanto nos martirizamos apenas para acabarmos o dia levando para casa a notícia de que fomos promovidos. Mas nem para nós é muito certo aquilo em que andamos metidos. É difícil chegar aos 35 ou aos 40 anos se se for demasiado directo, sem que isso se torne para nós um motivo constante de luta. Começamos a ser interrompidos e interrogados, e ficamos a dever explicações a meio mundo. Talvez, por isso, tantos se preservem na absoluta sensaboria dos ditos e expressões que não levam a coisa nenhuma. "Todo o bom raciocínio ofende", como notou Stendhal, sublinhado por Beauvoir, que prossegue a ideia, adiantando que, perante uma opinião peremptória, uma verdade definitiva, as pessoas amedrontam-se. "Tal é vaidoso, egoísta, mau, cúpido; enunciar-vos-ão com complacência os seus defeitos; mas se vós concluís: 'É um homem mau', o vosso interlocutor protesta: 'Eu não disse isso'; e acrescenta, talvez: 'Apesar de tudo, o fundo é bom'. Assim, o homem aceita ser pintado com pequenas pinceladas cruéis, mas, se o forçais a recuar para contemplar o seu retrato em corpo inteiro, fraqueja, não quer resumir, não quer concluir (...) repugna-lhe tomar partido: Deus sabe até que consequências poderia arrastá-lo uma lógica muito rigorosa; agrada-lhe ouvir-se falar, sentir-se pensar (...) mas com a condição de os seus pensamentos não o comprometerem, de permanecerem numa penumbra propícia. De facto, os homens não acreditam no que dizem, e é isso o que lhes permite saltar com desembaraço de um plano de verdade para outro"... E se acreditassem? Sem a busca de um alto grau de exigência as palavras são menos do que nada. Tornam-se uma das piores formas de sujeira. Algures, Blanchot anotava: "Todo o escritor que, pelo acto em si de escrever, não é conduzido a pensar: 'Eu sou a revolução'... na realidade, não escreveu nada." Neste episódio, e com o ruído azucrinante dos balanços de final de ano que logo se convertem em listas de sugestões para consumos natalícios, pudemos contar com a atenção e o exercício reflexivo de Patrícia Soares Martins que, depois de uma década como crítica literária nas páginas do Expresso, e um longo percurso a dar aulas na Faculdade de Letras, não perdeu o entusiasmo pelos textos e autores que persistem como grandes instigadores, mesmo se não esconde um certo desânimo num momento em que, mais do que se proibirem ou queimarem livros, o verdadeiro crime contra a literatura, e aquele contra o qual somos impotentes, é a não leitura dos livros. "Esse crime, uma pessoa paga-o com toda a sua vida; se o criminoso é uma nação, paga-o com a sua história", vincava Brodsky.

  • Aqui estamos entre todos os caprichos que nos dão a volta às ideias nas íntimas mudanças de cada dia e, muitas vezes, até por cansaço de nós próprios, acabamos invariavelmente por falar de política, e por decidir o que fazer com o país, especialmente se não sabemos o que fazer de nós próprios. Da mesa ali ao fundo, o Macedonio Fernández sugere que o problema se impõe pelo facto inescapável de que cada um de nós sabe profundamente duas ou três verdades complexas, mas os nossos contactos com a vida são de mil aspectos mais, de modo que fazemos quase todas as partes da nossa vida às escuras. O que nos agarra são uns quantos hábitos, em que insistimos, e que fazem o favor de afiar por nós aquilo que passa por uma personalidade, mas, cá dentro, para a maioria dos que se indagam, a sensação mais comum é de que escorrem pelos dias, e dependemos de alguns vícios para nos conciliar com a realidade. Para tantos, a sua própria natureza alienada é pressuposto da grandeza. Seja como for, por desconsolo, estamos a transformar-nos numa geração de tipos infrequentáveis, gente que troça de tudo, que balança entre a compaixão e o sarcasmo. E quanto ao bando que trabalhava a solidão através da arte, esses que partilhavam os seus juízos como quem prega uma partida aos demais, à moral e até a Deus, os chamados literatos, vivem hoje nessa imbecilidade auto-absorvida das suas conspirações que, sem a menor capacidade de efabular, se ficam pelo ressentimento. A falta de reconhecimento dos pares ou sequer de uns poucos leitores, compensam-na com uma dolorosa e insistente vanglória. E surgem-nos por aí cantando loas a si mesmos. Os egos deixam no ar um fedor a mortos-vivos. Vivem para as exéquias fúnebres, e não se cansam de nos maçar com a forma como gostariam de ser recordados. A peça é sempre a mesma, já a sabemos de cor, mas temos de aturar este tipo de actores que vivem embalsamados nos seus próprios maneirismos e exuberâncias desmioladas. Em lugar deste género de mártires constantes, antes são de preferir aqueles terríveis optimistas que não nos maçam com as suas desgostosas fantasias. "A vida é bela e assombrosa!", terá exclamado Maiakovski na véspera de se suicidar. Ao menos que a literatura nos pudesse servir ainda como vingança, escapando à frivolidade inconsequente desses dramas através da incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo que nos é oferecido. Mil vezes os brutos que são capazes de enterrar as esporas no caprichoso murmúrio do mundo e impor-lhe os seus delírios, esses que se mostram de tal modo empenhados em produzir desvios vertiginosos que os lemos de corpo perdido, voltados para aquela luz, suspensos dela. Temos boas razões para estarmos fartos de queixumes e lamúrias, para não aguentarmos mais esses tipos esforçados, vulgarmente honestos, por vezes até competentes. Antes preferíamos ser trapaceados, levados por batoteiros, ilusionistas, magníficos vigaristas, gente que da nossa atenção fizesse uma autêntica feira, algum antro de perdição. "De que riem os homens que um dia irão morrer? Riem, porquê?", interrogava Prado Coelho... "Porque tudo é frágil, indeciso, e, no entanto, único. Erguem-se, sustentam-se, entreajudam-se, empurram-se no escuro, escorregam, tombam, ferem-se, movidos sempre por esta paixão do único." Evidentemente, esta malta perdeu a fé nessa instância autónoma, nessa reserva do espírito, nessa barricada onde nos multiplicamos e nos entregamos a inumeráveis transmigrações. Perderam a fé nesse "indício clandestinamente transmitido, morse obstinado, de que é preciso estar atento, mobilizado como um exército face ao inimigo". Merecem-nos muita pena todos esses que nunca tiveram a paixão ou a coragem para deixarem de ser apenas um. Existir-se agarrado à convicção de si próprio merecia ser levado em conta como uma aflição seríssima. Já outros, sentem-se infectados por tanto daquilo com que contactam. Assim, adoecidos desde tantos do tal, o problema não será reconhecer este estado de desagregação íntima, nem se temos escolha. A partir do momento em que se admite o princípio fraudulento que liga os dias entre si, suspende-se em nós aquele ritmo regular, congeminado por uma crença qualquer no curso do tempo, nas evidências do progresso e no valor de justiça, que, inerentemente, deveria indemnizar-nos pelo esforço, compensar todo o labor e sacrifício. O problema, na verdade, passa a ser outro: como melhorar o nível dessa patologia de que sofremos. Temos de elevar o grau daquilo de que sofremos, melhorar a doença. Neste episódio, raptámos um jovem crítico que ia ter uma sessão de padel e fingindo que tínhamos isco, puxámo-lo para o desaire que já se sabe. O Guilherme tem aquela amabilidade própria dos que têm ainda muito tempo, e aquela confiança de quem parece imbuído de uma serenidade aérea e musical, sendo um dos poucos que entendeu começar cedo a dar conta das suas leituras, das suas admirações, afastando-se do género mais comum entre nós, esses literatos que só falam de si próprios e conseguem sempre chegar lá a pretexto de falarem de generalidades ocas.

  • O mundo tornou-se novamente exterior, absurdamente exterior, ao ponto de nos causar arrepios, mas a nós, hoje, tudo nos faz mossa. Nestas transfusões de sangue amarelo recebidas dos sistemas digitais, estamos cada vez mais uns bichos de aviário. E dividimos tudo em categorias, e temos infinitos protocolos de segurança, de desinfecção. Cá dentro, aquilo que nos provoca cócegas são as luzes, os sons, todas essas cores a pintalgar o cenário, e os ecrãs com as suas informações habituais. "Superfícies, superfícies, não há perigo se as atravessarmos, se estivermos nelas ou elas em vós. Fazei por continuardes superficiais, com as vossas emissões superficiais para receptores superficiais", aconselha Michaux. Lá fora chove, bátegas d'água, e tudo isso perturba o sinal. Nós mesmos somos afectados, o ambiente torna-se malsão. O espírito, o mecanismo cerebral tropeça, manobrando com dificuldade. Mas o que se há-de fazer? São cada vez mais constantes os temporais. Às vezes acordamos com a sensação de ter engolido uns baldes, e tudo isso nos subiu à cabeça. Esta, meio vacilante, começa a pregar-nos partidas, às vezes dolorosas. Estas nossas consciências subornadas pelo consumo até à letargia têm-se revelado bastante frágeis, escondemo-nos nessas superfícies, e as nossas ideias foram-se adaptando a meros reflexos, sem verdadeira profundidade. Quando falha a luz é uma autêntica catástrofe. E o pior é que sem essas meditações guiadas pela fiada de projectores, o vazio com o seu rumor de penas coloca-se a nosso lado e põe-se a devorar-nos o fígado. De resto, a companhia é terrível. Estamos cercados de toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. “Há muitos que, deixando cair um amigo, um amor ou o peso de um dever, se desculpam, a seus próprios olhos, evocando a obrigação de fidelidade para consigo mesmos — que é, muitas vezes, apenas o modo mais cómodo e cobarde de se enganarem a si mesmos. Pois quantas pessoas existirão capazes de conhecer tão exactamente as leis da sua própria evolução para poderem saber se essa infidelidade em relação a uma pessoa ou a uma coisa não era, ao mesmo tempo, o pior que cometeram em relação a si próprios?” Assim o viu Arthur Schnitzler. Vivemos cobardemente encerrados nas mais podres fantasias, sendo evidente como as crenças actuais se mostram cada vez mais débeis. "Aqui o limbo além o paraíso além o inferno/ que cheiro a despegado meu general". Tivemos a ambição de sair a investigar o nunca visto, derrotando cada um dos nossos caprichos, até sentirmos de novo algo que se pareça com um ímpeto famélico, fazendo desabrochar em nós um vício urgente, que nos sustente para o resto dos dias, confiando-nos à desgraça mais certa. Mas nisto tudo, de tanto nos tirarmos o pulso, levarmos em conta os indicadores deste evidente desgaste, que diagnóstico se pode fazer? Alguém ali levantou a mão... Talvez uma pergunta nos pudesse transportar noutra direcção. Mas esse é um dos dramas do nosso tempo. Quem é que ainda formula perguntas com real empenho em que lhe respondam? Descontando as crianças, quase ninguém. De tanto nos cuspirem em cima essa música que faz as vezes da consciência, já não sabemos exactamente onde começa ou acaba a nossa própria cabeça. Desfizeram o nosso juízo de tanto o mexerem com a colher de pau do senso comum. Seria terrível se falhasse a luz, mas talvez, passados uns meses, os pensamentos autónomos ressuscitassem. Estou outra vez a tremer, e sinto a falta de um braço que possa apertar. Deixa-me ler-te uma coisa do avô Teodoro: “Num dos seus ensaios, Aldous Huxley levantou a questão de quem, num lugar de diversão, estará realmente a divertir-se. Com a mesma justiça, pode perguntar-se quem é que a música para entretenimento ainda entretém. Na verdade, parece complementar a redução das pessoas ao silêncio, o desaparecimento da fala como expressão, a incapacidade de se comunicar de todo. Habita as bolsas de silêncio que se desenvolvem entre pessoas moldadas pela ansiedade, pelo trabalho e por uma docilidade pouco exigente. Por todo o lado, assume, sem dar nas vistas, o papel mortalmente triste que lhe coube no tempo e na situação específica dos filmes mudos. É apercebida apenas como música de fundo. Se já ninguém consegue falar, certamente já ninguém consegue ouvir." Já era muito tarde, desta vez. Esta tendência de formarmos bandas de três, andando à chuva, cobrindo distâncias com o vento a soprar e encher as velas do improviso é o que ainda assegura esta noivadiagem. Desta feita, foi o Bruno Peixe Dias quem exumou a estrela sextavada que há no corpo do rio, e trouxe o seu embalo profano habituado a carregar aos ombros filósofos completamente derramados e a soluçar dos prostíbulos até às moradas familiares, inventando pelo caminho as aventuras mais cativantes, de tal modo que as mulheres os acolhem como heróis épicos nesta Ulisseia à deriva. Hoje, não houve festa. Estivemos ali debaixo do telheiro a ouvir o piano ronceiro da chuva, e lá fomos do gargarejo para aclarar a garganta até à serenata que, se não serve para pagar as contas, pelo menos acalora.

  • É preciso passarmos bem longe do heroísmo para irmos um pouco além das noções de superfície, desde logo a essas zonas turvas onde o nome sem glória aguarda a sua ocasião, mas para isso, para mergulharmos naquela experiência dos homens infames, não tanto por infamados, mas antes por não gozarem o prestígio e a fama que, aparentemente, todos não conseguem, hoje, deixar de ambicionar, para isso, como dizia o outro (mas qual deles?), para isso o indivíduo com um nome glorioso, o autor como proprietário da "sua" escrita, em suma o sujeito como o mais próprio da experiência, têm de ser abalados. Já seria alguma coisa se pudéssemos libertar-nos dos nomes. Todos temos um, e desfiamos de tanto andar à sua roda, a fazer esse esforço absurdo por nos mostrarmos coerentes com nós próprios. A identidade é esse prego, a mais desoladora e incapacitante das ficções. "Havia, haverá talvez que redescobrir o rasto instantâneo e fulgurante que nos deixam esses que se precipitaram para uma obscuridade, nessas zonas onde todo o 'renome' se perde"... Mas quem foi que disse isto? E se o não tiver dito exactamente assim, como fazemos? E se houver um desvio, uma deriva substancial, como se divide a coisa? Em Nietzsche já é mais difícil alterar uma vírgula que seja, e em Ecce Homo fez notar que "a minha sabedoria consiste em ter sido muitas coisas e ter estado em muitos lugares, para poder chegar a ser um, para poder tornar-me um". Mas Foucault adianta que este Um é radicalizado. Segundo Erígenes, segundo Borges, Deus não sabe quem é nem o que é porque não é um nem um quem. Isto faz dele o oposto preciso de uma imagem de marca. Mas nós colocámo-nos uns aos outros de castigo. Menos que homens, somos marcas, e devemos encontrar o nosso fundamento, hoje, nas mais fundas raízes do negotius, da privação e do desejo, aspirar a essa imanência das grandes pioneiras da indústria. Se é certo que o gosto de não citar pode conduzir-nos a insuspeitados pântanos, e que há formas de apropriação sacana, formas de trespasse, que sinalizam uma tremenda descortesia, é preciso também ter em conta o que disse Goethe numa das suas conversas com Eckerman: "Há na história de toda a arte uma filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso precisamente que o torna grande. Homens como Rafael não nascem do solo espontaneamente. Têm as suas raízes na antiguidade, no melhor do que foi feito antes deles. Se não se tivessem aproveitado de todas as vantagens da sua época, não haveria muita coisa a dizer deles." Neste episódio, iremos fazer referência a outros casos, outros exemplos e autores que nos fazem relativizar a ideia de que o plágio é uma ofensa capital entre criadores, sendo que mesmo os grandes, aqueles que realmente admiramos, quase todos praticaram esses raptos ou roubos. Já temos tocado algumas vezes este tema, mas o horror persiste. Quase ninguém reconhece esse pudor maior daquele que preenche uns linguados de prosa, de forma ocasional e sem margem nem para grandes lucros nem grandes transtornos, e que mais do que recear ser acusado de rapinar os ovos de outras aves, receia sobretudo ser vulgar, vir por aí montado no rumor dessas banalidades de base que ninguém verifica se já outro antes disse, porque a todo o momento todos as repetem. A verdadeira sensibilidade muitas vezes está disposta a esse efeito de abertura em que uma outra escrita consegue escrever fragmentos da nossa própria quotidianidade, quando um dito transmigra para a nossa vida. Estou a copiar por cima do ombro de Barthes e ao mesmo tempo a adulterar certas frases de modo a fazer valer aqui um argumento que bem pode perder-se nos arquivos. Não seria de preferir essa selvajaria inspirada, divina, a de receber do texto, qualquer que ele seja, uma espécie de ordem fantasmática, e saborear essa distância, essa suspensão do seu ponto de vista, ou de qualquer outro, antes procurando tecer um tempo interior que represente não um indíviduo mas uma forma de co-existência? "O autor que sai do seu texto e entra na nossa vida não tem unidade", garante Barthes. E acrescenta: "é um simples plural de 'encantos'". Mas, hoje, nem mesmo na literatura se tem direito de passagem, tudo deve ser publicitado por lotes, obras enfileiradas nas estantes, ou jazigos num cemitério. Esta gente não vê a vantagem na dispersão, num canto descontínuo, de amabilidades, acenos, numa incessante troca de correspondências. Não os anima a proposta de um texto que seja destrutor de qualquer sujeito, um frémito que nos dispa dessas miseráveis fantasias neste baile cada vez mais inóspito. Seria melhor que ardesse de vez esta impostura, que o sujeito se dispersasse, que pudéssemos deambular fora de qualquer destino, um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte, mas fazê-lo antes de morrermos, de modo a que se pudesse renascer tantas vezes quantas se desejasse, e contagiar o ambiente, "como átomos voluptuosos, contagiar algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão". Mas preferem os títulos, reconduzir a porcaria da escrita a mais um regime de negociantes. Para confrontarmos este quadro de pressão limitadora, de vigilância e de denúncia, essa chibaria que é um dos traços que reforça o nosso irremediável provincianismo, para falarmos de plágio, mas também das tantas formas de iliteracia que, hoje, pretendem ditar como devem ser saboreadas e traficadas as ideias e o saber, contámos desta vez com Vítor Belanciano, um jornalista e escritor cheio de vícios, desde logo esse de alimentar quem o lia com a sua curiosidade excitada por uma rede de autores, projectos, vivências, num tu-cá-tu-lá, sem receio de violar as fronteiras disciplinares, saboreando música e leituras, esforçando-se por ajudar a instaurar essa ordem fantasmática, e que pagou caro quando supôs que podia escolher não integrar os elencos dos heróis. Acabou atirado para o molhe dos vilões. Assim, cá o recebemos.

  • O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.


  • Registo do lançamento de "Enclave", de Maria Lis, no dia 9 de novembro, em Évora, com apresentação de António Guerreiro
     


    Maria Lis foi à procura de objectos sem uso, remetidos aos dias passados, uma peneira, uma caixa de comprimidos, uma balança para cartas, um limpador de espingardas, algumas pedras, uma goteira e outras miudezas e entregou-os a várias crianças para lhes perguntar: e com estas coisas que já temos, também podemos fazer outro mundo?


    Uma geografia de entrelinhas, de silêncios e de mãos-na-massa, as imagens de Ana Filipa Correia, os objectos à espera de ânimo e o texto escrito no contexto da residência artística da poeta Maria Lis, ENCLAVE, editado agora pela Língua Morta, poderão ser vistos, ouvidos e mexidos na Pó de Vir a Ser, como promessas de outro modo, no dia 9 de novembro, pelas 15h00. Será também ocasião para lançamento em Évora da edição de ENCLAVE.


    Fotografias: Ana Filipa Correia


    A residência artística da poeta Maria Lis integrou as actividades do programa bienal da Pó de Vir a Ser, “A Condição do Campo”. A Pó de Vir a Ser é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura / Direcção Geral das Artes e tem o apoio do Município de Évora, Município de Montemor-o-Novo, Assimagra, Formas de Pedra. Integra a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea.













  • A morte não é mistério nenhum, já o facto de os vivos hoje terem tornado a vida tão insípida que os espíritos do passado se recusam a renascer, isso sim deve angustiar-nos. Perdemos o direito às repetições capazes de produzir alguma harmonia a partir da textura do quotidiano. O próprio tempo parece ter visto a sua natureza mudar, e a duração deixou de ser sentida como no estado normal das coisas. Hoje somos existências em suspenso, e mesmo os eventos mais drásticos não chegam para nos transtornar verdadeiramente. Diante da catástrofe, empanturramo-nos. Paul Valéry, no breve ensaio publicado entre nós com o título "O Governo da Máquina", fala numa crise da Inteligência, uma crise de todas as faculdades do espírito mediano, e instiga-nos a investigarmos em que sentido a vida moderna, os maquinismos obrigatórios desta vida e os hábitos que nos impõe podem modificar, por um lado, a fisiologia do nosso espírito, todas as nossas percepções e, sobretudo, o que fazemos com as nossas percepções ou no que estas se tornam em nós. Ainda pior que o desespero, é o apagamento desses sinais de vida, dessas inversões súbitas, dos gestos que reviram o sentido da história em que vínhamos embalados e produzem o inesperado. Estamos gastos por usos e para fins em relação aos quais nem demos o nosso acordo nem fomos consultados. Limitámo-nos a permitir que o estado de coisas se nos impusesse. Valéry entende que, se o lazer aparente ainda existe, perdemos o lazer interior… “Perdemos esta paz essencial das profundezas do ser, esta ausência inestimável durante a qual os elementos mais delicados da vida se refrescam e se revigoram. Somos banhados pelo esquecimento total; lavamo-nos do passado, do futuro, da consciência clara e premente, da presença implícita e confusa das obrigações suspensas e das expectativas que espreitam.” Um dia destes deixaremos sequer de perguntar quanto ao que podemos fazer para mudar o rumo das coisas. O carácter de um homem diluir-se-á juntamente com o seu destino à medida que deixa de poder afectá-lo. Mas durante muito tempo houve um bom número de canalhas que não se eximiam, ao abandonarem qualquer esperança de transformar o mundo, de pelo menos deixarem um rastro de devastação nesses actos desesperados. “Fugir, sim, mas no momento da fuga empunhar uma arma” (Deleuze). Mas hoje a máquina começa a ser o verdadeiro actor do nosso tempo. Ela mergulhou os seus circuitos em nós e empurrou-nos para uma frequência em que qualquer dos nossos impulsos se vê seduzido e dominado, absorvido por ela. Continuamos a usar termos como resistência ou revolução, mas a iniciativa foi perdida para a máquina. É esta quem programa todos os aspectos das nossas vidas, estende o seu horizonte e articula todos os domínios através da sua eficácia esmagadora. A alma começa a parecer-se cada vez mais com um algoritmo. Perante o efeito de intoxicação pela pressa que Valéry diagnosticou nas nossas sociedades há um século, este poeta-filósofo notou como “das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outras a construí-la, outras ainda a planear ou a preparar uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”. E acrescenta que “estas inteligência rebeldes sentem, com horror, que o todo completo e autónomo que era o espírito dos antigos é substituído por um qualquer daimon inferior que só pode colaborar, aglomerar-se, encontrar o seu sossego na dependência, a sua felicidade num sistema fechado que se fechará tanto mais sobre si mesmo quanto mais exactamente criado por nós e para nós”. Mas e podemos lutar ainda por alguma coisa? Para Valéry é preferível recuar e voltar a pensar. Ele entendia que não se trata de resolver estes problemas, porque talvez o grande vício tenha nascido desse abandono, desse pacto estabelecido com as máquinas e que não é substancialmente diferente dos terríveis compromissos que o sistema nervoso faz com os demónios subtis da classe das drogas. “Quanto mais a máquina nos parece útil, mas útil se torna; quanto mais útil se torna, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privarmos dela.” Não estamos apenas a transformar-nos noutra coisa. Estamos a deixar de ser o que quer que tenhamos sido até aqui, ao ponto desses espectros já nem saberem como exercer alguma pressão sobre nós. O passado está a sentir o sinal perder-se, a tradução a tornar-se cada vez mais débil, como um morse que persistisse já sem ouvidos que o soubessem interpretar. Para falarmos sobre os limites e as dificuldades que a tarefa do tradutor comporta, sobre erosão desta e doutras profissões liberais, sobre a tão ameaçada classe ligada às actividades da inteligência ou do espírito, sobre as ocupações desses indivíduos indefinidos, e cuja acção tem muitas vezes um alcance incomensurável, pedimos a Ana Maria Pereirinha para partilhar connosco as anotações que foi fazendo no seu dossier de pautas, isto ao fim de décadas em que tem estado ligada aos vários momentos e dimensões da vida editorial, estando hoje dedicada à tradução de textos e obras literárias. Colhendo cacos e escolhos, comparando fragmentos, tentando alcançar uns palmos sobre aquilo que se adivinha, começou a ficar claro que tudo aquilo que ainda somos capazes de recordar nos dá uma medida do que já perdemos ou estamos prestes a perder.











  • Quando é que um político ou algum dos nossos banqueiros se indispõe de vez com a mentecapta ironia disto tudo e nos vem ler alguns dos poucos versos realmente espinhosos que Fernando Pessoa nos dirigiu? Quando é que um deles passa realmente ao ataque, e lança em tom ríspido aquele: "Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!" Mas quando é que, em vez desse ar compungido de quem vive os seus dias num perpétuo luto, e agora ergue a voz para fazer a evocação incandescente e delirada de um pobre autocarro, quando é que abandonamos esse "Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República extrema-unção-enxovalho da Desgraça..."? E quando é que se tem direito a uma exaltante "Cena do Ódio" e que não seja apenas um esbaforido desabafo, mas uma incitação contra essa caricatura a todos os títulos porca que pretendem fazer passar de todos nós, falando-se na passividade lusa, no gosto malsão da ordem? Quando é que alguém relembra que a haver uma réstia de patriotismo todo ele residirá no combate a essa ordem panúrgica, para que não sejamos continuamente destinados à impotência e às representações falsas que circulam em nosso nome? Talvez, como aventou Eduardo Lourenço, a nossa crise provenha de uma má leitura de nós mesmos e acaso de um excesso de complacência para com tudo quanto é dos outros. Mas pode bem servir-nos de disfarce essa brandura toda enquanto se engatilha algum tipo de metamorfose diabólica. Pois a alternativa tem sido esta coisa que temos vivido, e então mais vale que cada um tenha numa cábula aqueles versos do Almada: "Futrica-te espantalho engalanado,/ apeia-te das patas de barro,/ larga a espada de matar/ e põe o penacho no rabo!/ Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!/ Espuma-te no chumbo da tua Valentia!/ Agoniza-te Rilhafoles armado!/ Desuniversidatiza-te da doutourança chacina,/ da ciência da matança! (...) Despe-te da farda,/ desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu/ que ficas desempregado!/ Acouraça-te de senso,/ vomita de vez o morticínio,/ enche o pote de raciocínio,/ aprende a ler corações,/ que há muito mais que fazer/ do que fazer revoluções! (...) Põe de parte a guilhotina,/ dá férias ao garrote!/ Não dês língua aos teus canhões,/ nem ecos às pistolas,/ nem vozes às espingardas!/ – São coisas fora de moda!/ Põe-te a fazer uma bomba/ que seja uma bomba tamanha/ que tenha dez raios de Terra./ Põe-lhe dentro a Europa inteira,/ os dois pólos e as Américas,/ a Palestina, a Grécia, o mapa/ e, por favor, Portugal!/ Acaba de vez com este planeta,/ faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!/ (Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!/ e esta gente distraída em guerras!)" Estamos todos gastos pelo uso que nos damos, e, ainda pior, imensamente desmoralizados pelas coisas que nos saem da boca, pelos lugares onde damos por nós, pela companhia, desde logo a desses a quem, na falta de outra gente, chamamos convivas, parceiros, amigos, toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. Doentes daquilo que somos, vivemos com o pavor de qualquer outra coisa. Por estes dias, como sempre que ocorre algum acidente que sobressalta as nossas consciências imersas em fantasias cada vez mais vulgares, cada um mente a si mesmo sobre a sua estranheza em relação àquilo de que agora se indigna, procurando desde logo esquivar qualquer responsabilidade quanto ao desenrolar das coisas, que apenas se resolve quando tudo se esquece e se passa à coisa seguinte. "Se já vimos multidões coléricas fazer revoluções, nunca vimos massas indignadas fazer outra coisa que não protestar de forma impotente", como nota o Comité Invisível. E ainda que o reconheçamos, é esta a prescrição que circula e que é acatada quase sem excepções. E depois?... (Mas antes ainda é preciso olhar em volta e confirmar se há ainda alguém que faça essa pergunta.) Bem, depois a burguesia vinga-se ao passo que a pequena-burguesia, já enfadada com a sua indignação, retoma a sua farsa, dormindo para o mesmo lado que até ali. Tudo isto ainda é uma forma de consumo, de segurarmos o único horizonte que acicata e satisfaz os nossos apetites, mesmo que em troca de nos tornar prescindíveis, descartáveis, imemoráveis. Neste episódio, reunimo-nos uma vez mais nessa cripta escavada à unha pelo mais graduado dos nossos almirantes que vivem numa bulha constante com as tempestades em mar alto. Regressámos à Poesia Incompleta pedindo o balanço e os enjoos das sucessivas tripulações que se revezam entre turnos a horas absurdas e que caberiam bem entre estes versos de José Emilio Pacheco, que servem ao mesmo tempo para ilustrar a natureza deste navio que atraca na Lapa como a rir-se da envolvência: "O nosso barco encalhou tantas vezes/ que já não tememos ir ao fundo./ É-nos indiferente a palavra catástrofe./ Rimos de quem pressagia males maiores./ Navegantes fantasmas, prosseguimos/ rumo ao porto espectral que retrocede./ O ponto de partida já se esfumou./ Sabemos há muito que não há regresso.// E se ancorarmos no meio do nada/ seremos devorados pelo sargaço. / O único destino é continuarmos a navegar/ em paz e em calma rumo ao próximo naufrágio."

  • Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.

  • Não se chega a uma versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor" sem o medir, avaliando as suas escolhas, face à proliferação de livros que hoje se publicam. E isto porque, como notou Benjamin, "antes de as pessoas chegarem ao ponto de abrir um livro, já um tão denso turbilhão de letras mutáveis, coloridas, conflituosas caiu sobre os seus olhos, que as possibilidades de penetrar no silêncio arcaico do livro se tornaram escassas". Ele ainda adianta que "os enxames de gafanhotos da escrita que hoje encobrem o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades, irão tornar-se mais densos de ano para ano". Chegados a este ano algo mirífico e inimaginável, sobretudo pelos efeitos da redundância e ruído incessante que obrigam cada leitor a escavar um buraco tão fundo de tal modo que possa escapulir-se desta época, lendo como um escafandrista a umas boas léguas de profundidade, aquele sol está reduzido a um candeeiro intermitente. Por estes dias, o imaginário aloja-se entre o livro e esse candeeiro, e um bom leitor reconhece-se sobretudo por aquilo que logo rejeita, todos esses livros que apenas cheira e descarta. Numa das suas breves teses sobre a técnica do crítico, o ensaísta alemão diz-nos que "polémica significa arrasar um livro com base em poucas das suas frases". "Quanto menos se examinou o livro, melhor. Só quem é capaz de arrasar pode criticar." Logo a seguir eleva o tom de provocação, dizendo-nos que "a polémica autêntica ocupa-se de um livro com tanto carinho como um canibal prepara um bebé". Tinha teses maravilhosas este tipo. Tantos dos que fazem dele um solene exegeta, um tão escrupuloso e grave juiz da contemporaneidade, benzem-se diante de algumas das suas asserções que roçam a blasfémia para esse culto beato que cerca os livros. A ele pareceu-lhe útil relacionar os livros e as prostitutas, começando por notar que, desde logo, se aproximam por se poder fruir destes e daquelas levando-os para a cama. "Os livros e as prostitutas entretecem o tempo. Dominam tanto a noite como o dia e tanto o dia como a noite." Mais? Sim: "Os livros e as prostitutas não dão a entender que os minutos lhes são preciosos. Quando nos envolvemos com eles mais de perto é que notamos a pressa que têm. Vão contando o tempo à medida que nos embrenhamos neles." Quantos desses cursos literários, seja na universidade seja nas abordagens menos sistemáticas, nesse regime de catequese e formação para a caridade promovido pelos festivais, se lembrariam de admitir que a frequência do putedo (o outro, aquele mais prestimoso) poderá ser um trunfo para o judicioso embalo de um crítico literário? Benjamin não duvida de que "os livros e as prostitutas sempre tiveram um amor infeliz uns pelos outros". Só mais uma (e esta é fundamental): "Os livros e as prostitutas gostam de contar, com muito prazer e muitas mentiras, como se tornaram no que são. Na verdade, muitas vezes nem eles próprios reparam nisso. Anda-se anos a fio atrás de tudo 'por amor' e, um belo dia, eis na rua a solicitar clientes um corpus avantajado que sempre apenas pairara acima dela, 'por curiosidade científica'." Já sabemos que aliança daria o ponto de partida para um evento literário que realmente quisesse deixar de pautar-se pelo esquematismo enfastiante a que nos vão habituando os nossos programadores culturais. Se a vida não se detém, apesar dos esforços em sentido contrário, das pressões para prever e controlar tudo até aos mais ínfimos detalhes, aquele momento que mais nos cativa é quando esta se separa daquilo que habitualmente se lê, seguindo o seu curso. Num universo saturado de livros, onde tudo está escrito, ficamos com a sensação de que não nos resta outra coisa senão reler, ler de outro modo, ganhar ousadia e persistir nas suas derivas. Não podemos ter criadores exaltantes enquanto não aprendermos a ler de forma digressiva e selvagem. A liberdade no uso dos textos é um aspecto crucial para que o leitor deixe de se sentir submetido à intenção autoral, para que leia desfazendo-se da orientação pré-definida, ajudando assim a que a literatura não se confunda com as refeições pré-cozinhadas que ocupam secções cada vez mais vastas nos supermercados. O melhor leitor é o pior leitor, aquele que não se submete a nenhuma outra disciplina senão o seu próprio interesse, necessidade, apetites, urgências. Como registava Ricardo Piglia, encontraremos os grandes instigadores de uma retomada do ânimo das vanguardas nesses leitores que traçam os seus percursos gozando de "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossível". No entender deste escritor argentino, a maior invenção de Borges terá sido esse leitor que goza uma autonomia absoluta, e que manifesta a sua capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no seu por: "A ficção como uma teoria da leitura." Neste episódio, e para levarmos mais longe as nossas investigações sobre o papel da crítica literária na recomposição de um espaço literário, de modo a que a obra de arte possa uma vez mais funcionar como uma "central de energia", inspirando e desafiando a vida, neste episódio contámos com a participação de Carlos Maria Bobone, alfarrabista, escritor e crítico literário que tem demonstrado uma sagacidade e uma erudição invulgaríssimas e que fazem dele um dos elementos decisivos dessa caça às avessas de tudo aquilo que são as tendências e compulsões da época.






  • Alguém faz algo que ninguém compreende, um acto que excede a experiência de todos. Esse acto não dura nada, mas tem a qualidade pura da vida, e, não sendo narrativo, é a única coisa que faz sentido narrar. Hoje abundam os narradores, aranhas senis balouçando nas suas teias de tinta, contando uma e outra vez as mesmas histórias. Falam muito das coisas que fizeram, relatam-nos tudo o que os motiva e aquilo que ainda esperam fazer. Nem precisam de se escutar uns aos outros, o seu número apenas exprime uma situação sem saída, uma multiplicação que impõe essa fábrica de relatos na qual vivemos encerrados como num cárcere. O que importa é narrar, mas pouco importa se a história é capaz de instruir ou animar alguém ao ponto de orientar a sua acção. A crise da literatura portuguesa coincide com o ânimo desses funcionários da reprodução do mesmo, que constróem frívolos enredos nos quais não pesam nem conhecimento nem a ânsia exploratória, e é por serem tão crentes na sobrevivência do seu talento que recusam todos os elementos efémeros, sendo incapazes de se actualizarem catando aqueles elementos radiantes de entre a malha de detritos. "O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto nenhum deles se tornou experiência”, diz-nos Agamben. "Ou seja, o ser humano está repleto de eventos ao longo do dia, mas nenhum se torna experiência. É como se a banalidade da vida virtual não fosse o suficiente para que os dias contassem como bem vividos…" Todos falam de obsessões, mas ninguém é capaz de mergulhar nelas e extrair alguma visão minimamente inspiradora. Estamos a desaparecer engolidos pelo olhar destas pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, "e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios", adianta Benjamin, esse ensaísta alemão que tem servido de esteio a todo o tipo de derivas. Mas para lá desse plano geral em que todos participam, dessas ilusões para as quais todos contribuem, há que sinalizar como sempre foi suficiente um acontecimento inesperado para nos alterar drasticamente a vida. Infelizmente, na vida da maioria dos jovens a única metamorfose que vemos ocorrer leva-nos a espiá-los apenas até ao momento em que aquela vítima, cansada da sua própria agitação moral, cede e dá os primeiros passos de verdugo. Talvez a ninguém apeteça falar por sentir que mais tarde ou mais cedo acabará por se revelar perante si mesmo, desfazendo a sua própria fantasia. Com a mesma inclinação de Unamuno para nos sentirmos intrigados perante os gestos e as manifestações da nossa juventude intelectual, podemos assinalar que talvez não haja outra forma de estar empenhado no seu tempo que não passe por estar investido nos sinais do assalto que deles esperamos ao ideal. E se tantos dão sinais de uma postura desdenhosa diante daqueles que podem ou não reclamar o vigor de uma acção regenaradora, uma outra atitude era a do grande autor espanhol, que preferia exprimir com uma certa dureza o seu afecto, chegando a demonstrar um gosto por chicotear aqueles de quem esperava algo de transformador. "Para os irredimíveis, para os que se limitam a arrastar-se por uma vida sombria ou uma morte ainda mais sombria, para esses há apenas a apóstrofe florentina: não falemos deles, olhemos e passemos adiante." Unamuno dedicou várias das suas intervenções a confrontar a tendência crescente dos jovens para se exaltarem de uma forma ou de outra, fosse directamente fosse através de elogios mútuos, manifestando um orgulho insuportável sem muitas vezes terem a menor consciência da tradição que procuravam abalar. "Há muito orgulho fingido nos nossos jovens, tal como há pura ficção na hediondez daquele animalzinho inocente a que os naturalistas chamam Moloch horridus, o inofensivo lagarto da Austrália, que, quando é molestado, assume o aspecto de um animal assustador e nocivo, eriçando de medo não sei que espécie de cauda ou gola sobre o pescoço para se fazer maior do que é." O que a seguir nos diz sobre a juventude espanhola do seu tempo pode ser transposto sem grande esforço de adaptação para retratar a nossa juventude intelectual: "A maior parte dos males de que sofre a nossa juventude tem origem na precariedade da nossa vida cultural. A sua fantasia engana-os mais do que nunca, mostrando-lhes o pão sob a forma de glória. Já o disse muitas vezes, e repito-o, e não será a última vez: entre nós, a ganância afoga a ambição. Somos um povo de mendigos arrogantes, que diz 'Deus lhe pague!' a quem nos dá esmola e 'Que pulha' a quem não dá. Um jovem chega a Madrid à procura de uma boa posição, e logo se lança em busca de um tacho, para ter uma vida o mais cómoda possível. E os que se julgam mais independentes são geralmente os que se lançam com maior afinco neste esforço de se fazerem funcionários de uma reputada instituição qualquer. O mais triste nisto tudo é que os jovens estão dispersos e não compreendem que, se ao menos se se unissem, deixariam de ter de obter cunhas e favores, e que marchando numa falange compacta isso lhes daria muito mais força." Na própria literatura vingou o regime da cunha, demasiados pastiches, arranjinhos, esquemas, demasiadas paródias insossas... Antes seria de preferir plágios directos, roubos descarados, desde que se guiassem por essas paixões que são capazes de nos guiar pela vida fora. Falando dos seus velhos amigos, o alter ego de Ricardo Piglia notava que à medida que foram envelhecendo manifestavam a aspiração de se transformarem naquilo que antes odiavam, e que tudo o que antes lhes gerava repulsa agora contava com a sua admiração... "Já que não podemos mudar nada, pensam, mudemos de opinião... E com isso vemos bibliotecas inteiras serem enterradas, e, nos pátios, pilhas de livros incineradas ou vendidas a pataco, mas falta ainda notar que, por mais difícil que resulte para alguns desfazerem-se do conteúdo das suas estantes, a traição mais perfeita está no modo como estes passam a ser lidos, com uma espécie de nostalgia piedosa, como quem se enternece com a sua juventude ao mesmo tempo que deplora as paixões que a animavam. Esses velhos amigos, "leitores dogmáticos, literais, dizem agora coisas distintas com a mesma sabedoria pretensiosa de antes". Antes tinham ao menos a desculpa de acreditarem em si mesmos, ao passo que agora acreditam apenas nos seus álibis e desculpas. Neste episódio, a Maria Brás Ferreira aceitou o convite sem fazer qualquer fita, sem negociar os termos, simplesmente deixou-se levar, e até pôs o telemóvel em modo avião, cortando qualquer sinal de geolocalização. Mantivemo-la refém durante cinco horas. E ao contrário do largarto australiano, dispensou qualquer cauda ou gola e deixou claro que estava disponível para ir dançar descalça no coreto, fosse este nalguma praça da nossa província fosse no coração das trevas.